O Douro também é nosso…

«apesar das muitas divisões administrativas e de uma estranha vontade de alguns de afastar o Douro da Guarda, existe uma relação umbilical entre o Douro Sul e a cidade da Guarda.»

O nascimento do primeiro bebé do ano no distrito da Guarda chamou-me a atenção para dois pormenores curiosos. O primeiro, a pobreza que continua a ser uma chaga e uma realidade em Portugal – que tem perto de dois milhões de pobres – e o segundo, uma curiosidade, que apesar das muitas divisões administrativas e de uma estranha vontade de alguns de afastar o Douro da Guarda, existe uma relação umbilical entre o Douro Sul (ou a Beira Transmontana) e a cidade da Guarda.

O Daniel nasceu às zero horas do primeiro dia de 2021 na maternidade da Guarda. E, não fosse a planificação e o nascimento de um bebé por cesariana na Maternidade do Vale do Tâmega à mesma hora, teria recebido o título de primeira criança do ano em Portugal… Ainda assim, recebeu um cheque de O INTERIOR e do “Continente” de 250 euros. Infelizmente ainda há bolsas de pobreza por todo o país; infelizmente ainda há muitas famílias, como esta, que precisam de apoio e ajuda a todos os níveis para ter uma vida mais digna e menos miserável – e é obrigação de todos contribuirmos para erradicar a pobreza e colaborarmos com quem mais precisa. Felizmente, neste caso, a Câmara de Foz Côa tem a situação sinalizada e colabora na integração e melhoria das condições de vida da família de Sebadelhe. A solidariedade é um pressuposto humanista cada vez mais esquecido na velocidade do tempo e no dia a dia de cada um de nós.

Sebadelhe é uma aldeia do Douro, nas terras de Numão, no concelho de Vila Nova de Foz Côa. É um território inóspito, isolado, deslumbrante, de uma beleza frondosa elevada à categoria de Património Mundial com a classificação do Alto Douro Vinhateiro pela UNESCO. O Douro Sul é uma terra de trabalho braçal, nas vinhas e olivais, com a beleza ímpar das amendoeiras em flor, das colinas íngremes e dos socalcos de videiras cavados pelo homem e a ajuda das mulas, é uma terra de Invernos rigorosos e Verões tórridos… onde se produzem os melhores néctares (e não é só o “Barca Velha”) e os turistas chegam de todo o mundo impressionados pela beleza natural deste território de contrastes.

As gravuras rupestres confirmam a presença do homem há milhares de anos por estas terras e o Museu do Côa é uma obra de arquitetura moderna notável como centro de uma catedral arqueológica de dimensão universal – o Parque Arqueológico do Vale do Côa.

Historicamente, estas terras pertenciam à Beira – que correspondia à faixa do território português limitada a norte pelo Douro e a sul pelo rio Tejo (os rios eram integradores cultural e economicamente, mas eram essencialmente uma fronteira, uma divisão, e o Douro era o marco das estremas entre Trás-os-Montes e a Beira). Com a reforma administrativa de 1832 o território interior da Beira foi dividido em duas províncias, a Beira Alta e a Beira Baixa e a reforma de 1835 dividiu Portugal em distritos e as terras de Foz Côa ficaram no distrito da Guarda e integraram a província de Trás-os-Montes e Alto Douro, que a reforma de 1936 confirmou, até que em 1959 as províncias acabaram. Com a promoção das unidades territoriais para fins estatísticos e de gestão de fundos comunitários, o concelho de Vila Nova de Foz Côa foi afastado do distrito da Guarda e passou a pertencer à CCDR Norte. Supostamente, por ter mais afinidades culturais e económicas. Mas a realidade tem demonstrado o contrário. A periferia tem penalizado gravemente estes territórios que foram e são ostracizados (a falta de regionalização prejudica as periferias). E se no turismo até pode dar “jeito” a Foz Côa pertencer ao Turismo do Norte, pelo crescimento turístico do Douro, nos demais vetores o concelho tem uma afinidade e uma relação afetiva e estrutural ao distrito da Guarda. Em 2008, por vontade política, o concelho foi integrado na Unidade Local de Saúde do Nordeste (1 de outubro de 2008), caminhando para Norte onde foi integrada em diferentes dinâmicas institucionais. Porém, a vivência e a realidade social divergiram da opção político-administrativa. As pessoas do concelho, naturalmente, sempre que precisaram de apoio sanitário e médico, continuaram a recorrer ao hospital da Guarda. Por isso, em maio de 2014 (Decreto-Lei nº 59/2014 de 16 de abril), procedeu-se à transferência dos cuidados de saúde do Nordeste para a Guarda – porque os «movimentos tradicionais das populações» e as necessidades eram e são feitos entre o Douro e a Guarda, mesmo que haja uma obsessão e uma vontade política de integrar o Norte, confirmada com a instalação das comunidades intermunicipais, com o concelho de Vila Nova de Foz Côa a reforçar a sua ligação à Régua e a juntar-se a Vila Real na CIM do Douro. O caminho administrativo está traçado, mas, enquanto o concelho pertenceu à região de saúde do Norte, o centro de saúde funcionava num contentor e foi no “regresso” à Guarda que avançou a construção do novo centro de saúde de Foz Côa a expensas da ARS Centro… E, como confirmou o nascimento do primeiro bebé de 2021 no distrito da Guarda, as pessoas do Douro também são do distrito, sejam durienses ou da Beira Transmontana.

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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