O Cidadão de Cidadelhe

“O centenário de José Saramago, que se assinala a 16 de novembro de 2022, mas cujas comemorações começaram terça-feira, data em que o “nosso” Nobel da Literatura completaria 99 anos, deve ser uma celebração da cultura e da língua portuguesa.”

O centenário de José Saramago, que se assinala a 16 de novembro de 2022, mas cujas comemorações começaram terça-feira, data em que o “nosso” Nobel da Literatura completaria 99 anos, deve ser uma celebração da cultura e da língua portuguesa. Para evocar a data, as comemorações começaram dia 16 em várias bibliotecas portuguesas, espanholas, cubanas ou brasileiras, e em várias escolas com a leitura do conto “A Maior Flor do Mundo”.
Enquanto a Fundação José Saramago apresentava o projeto “Viagem a Portugal Revisited”, um mapa digital baseado na mais elementar obra de viagens pelo país, recordo alguns dos relatos do “viajante” pela região beirã. Em especial, o relato da noite mal dormida na Guarda (março de 1980) quando Saramago chegou à Guarda, depois da meia-noite, e dormiu no carro porque o Hotel estava esgotado, ou a narração da conversa com o senhor José Guerra no Hotel de Turismo.
A primeira evidencia uma Guarda provinciana e pouco desenvolvida, mas com visitantes e viajantes (hoje diríamos turistas) que esgotavam o grande Hotel de Turismo (há dez anos fechado) – «como é possível, tão grande edifício, e não haver sequer um quarto. Não havia. O frio, lá fora, era de transir. O viajante podia ter pedido a esmola de um sofá na sala de espera, para esperar a manhã e um quarto despejado, mas sendo pessoa com o seu orgulho entendeu que esta sua tão grave imprevidência merecia punição, e foi dormir dentro do automóvel. Não dormiu…».
A segunda levou Saramago a Cidadelhe para dar a conhecer ao mundo uma extraordinária obra imaterial, carregada de misticismo e tradição, o Pálio. Mas se a «espécie de patrono laico, um deus tutelar», o Cidadão de Cidadelhe, que desde 1656 é disputado, escondido e amado por «um povo tão carecido de bens materiais», exemplar único e motivo de todas as conversas sobre Cidadelhe, é o relato da conversa inicial, ao jantar, no Hotel de Turismo, entre o escritor e o chefe de mesa, que aqui mais me interessa e me obriga a refletir sobre a região que fomos, sobre o atraso e a pobreza em que sempre vivemos. «Diz o senhor Guerra: “Sou natural de Cidadelhe, uma aldeia do concelho de Pinhel. Também pensa lá ir?” Responde o viajante: “Tinha essa intenção. Gostaria de ver. Como está a estrada?” “A estrada está má. Aquilo é o fim do mundo”. (…) “A minha irmã morreu aos sete anos. Tinha eu nove. Deu-lhe o garrotilho, e esteve assim, cada vez pior. De Cidadelhe a Pinhel são vinte cinco quilómetros, nessa altura era carreiro, tudo pedras. O médico não ia lá. Então a minha mãe pediu um burro emprestado e viemos os três, por aqueles montes.” “E conseguiram?” “Nem meio caminho andámos. A minha irmãzinha morreu. Voltámos para casa, com ela em cima do burro, ao colo da minha mãe. Eu ia atrás a chorar” (…)».
Este era o país que fomos, onde se morria por falta de assistência médica, por falta de estradas, por sermos uma região onde a miséria grassava e a pobreza dominava. Felizmente, já não é assim. Felizmente, andámos muito para aqui chegar. Mas mesmo depois de uma grande viagem, não podemos deixar de reivindicar melhores condições, e por isso precisamos de um melhor hospital distrital, porque hoje não se morre no carreiro, mas morre-se no centralismo, no abandono a que fomos votados. Morre-se de morte lenta. Porque continuamos a estar no «cabo do mundo, no cabo da vida. Se não houver quem se lembre».
Neste ano de Centenário de José Saramago deixo um repto à CIMBSE e aos municípios: a criação de uma rota turística da Viagem de Saramago pela região e a evocação formal e material da obra literária que o Nobel nos legou e que passou pelo nosso território – em especial a “Viagem a Portugal” e a “A Viagem do Elefante”; à Câmara de Figueira de Castelo Rodrigo que poderia instalar, por exemplo, um centro de estudos da “Viagem do Elefante”; ou Pinhel, que poderia instalar um centro de estudos do “Cidadão de Cidadelhe” naquela freguesia, «o calcanhar do mundo». Tal como tantos outros, que viajámos até à Casa das Tías, em Lanzarote, para conhecer mais dos lugares e das personagens do Nobel, poderíamos “viajar” pelas nossas terras e receber tantos seguidores de palavras memoráveis e das histórias imortalizadas por José Saramago. A minha avó era de Cidadelhe, e não «posso ficar indiferente quando me dizem que terras assim estão condenadas a desaparecer».

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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