É uma expressão arrebatadora, uma forma de arte esplendorosa e envaidecida, que nos surpreende e sobressalta. Tanto, que nos faz meditar e refletir. Como é possível corresponder à forma de estar e viver do seu proprietário, perdido numa quinta rural, longe de tudo e de todos?
O Chafariz de Santo André, ou da Alameda, no seu estilo dos mais belos do país e seguramente o mais belo das Beiras, constitui hoje uma das referências arquitetónicas da cidade da Guarda.
Situado numa das principais entradas da cidade, chama a atenção pela sua beleza e, quase se poderá dizer, imponência. Este chafariz de estilo barroco-rococó, de forte efeito cenográfico, reúne e destaca representações religiosas e zoomórficas, numa iconografia alusiva à água e aos monstros marinhos que no imaginário do seu criador o povoam. A pedra de armas da família Saraiva Refoios, seus proprietários, ladeada por dois “dragões”, é rematada no topo por um anjo, sob uma concha, como que presidindo e abençoando a família.
Esta família de Fidalgos Cavaleiros da Casa Real era uma das mais ricas e prestigiadas das Beiras, mas para quem o tempo, inexorável, como em tantas outras, levou da ostentação e poder a tempos difíceis e austeros. E foi também isso que aconteceu com este chafariz esplendoroso, erguido como símbolo de poder daquela família, numa ostentação premeditada. De facto, abatido que foi o poder dos Saraiva Refoios, também o chafariz que os representava caiu no anonimato, limitado que foi à aldeia, e acabou, afinal, humildemente, por ser demolido e “encaixotado”, para ser reerguido, bem longe, seguramente, dos desejos de quem o mandou construir.
Exuberância para impressionar
Não se sabe, ao certo, quando e quem o mandou construir.
No brasão que se encontra no chafariz constam os apelidos Saraiva, Costa, Pereira e Refoios, de que foi primeiro titular Pedro Saraiva da Costa Refoios, falecido em 1798.
Sucedeu-lhe seu filho, Mendo Saraiva da Costa Refoios, nascido a 29 de abril de 1756. Em 1789 casou com Luísa Alexandrina de Mascarenhas e Melo, açafata da rainha Dona Maria I, através do qual teria passado a ser Fidalgo Cavaleiro da Casa Real (1791) e consequentemente a ter estatuto e relações na corte.
Talvez tenha sido, curiosamente, para bem receber, mas sobretudo para impressionar uma personagem tão importante, vinda da corte de Lisboa e da moda, que teria mandado construir no seu modesto solar de província o magnifico chafariz, digno de uma grande cidade.
Embora subsistam algumas dúvidas, a encomenda inicial e as obras do chafariz teriam sido realizadas entre no período que decorreu imediatamente antes ou depois do seu casamento. As partes laterais foram construídas também por ele, mas posteriormente, talvez quando mandou fazer o lago do repuxo.
Mendo Saraiva morreu em 29 de agosto de 1820, deixando aos herdeiros muitos bens e propriedades, e bastantes dívidas.
O albergue de mendicidade distrital
Em 1948, o velho solar da família Saraiva Refoios, incluindo o chafariz, foi adquirido para ali instalar o Albergue Distrital, então da responsabilidade da Polícia de Segurança Pública.
Alguns anos depois, em finais da década de 60, o Albergue estava a precisar de obras de ampliação e para isso era necessário deitar abaixo o chafariz, que, diga-se, estava quase ao abandono e em completo esquecimento. É assim que, em 1968, o Dr. Lopes Quadrado, presidente da Câmara da Guarda, entendeu que o melhor que havia a fazer era transferir o chafariz para um lugar apropriado e condigno, mas na Guarda. O espaço foi fácil de encontrar, o largo onde se encontrava o chafariz de Santo André. De arquitetura muito modesta, é um chafariz muito antigo, e dos mais importantes para as gentes da Guarda.
As suas águas sobrantes escorriam para um bebedouro, baixo e longo, que servia para dessedentar os animais, depois do difícil acesso à cidade, e ainda para regar alguma horta. Ao tabuleiro superior acedia-se por duas escadarias, os animais e viaturas iam, como ainda hoje, por um estreito caminho entre a esplanada e o Sanatório.
Era ali que, no meio de danças e descantes, se fazia o ajustamento do pessoal vindo das aldeias vizinhas para as ceifas na região ou no Alentejo.
Era também ali que em tempos de feira de S. João e das célebres “Festas da Cidade” se instalavam carrinhos, carrosséis e outros divertimentos. Ali se realizaram touradas e encontrava lugar o circo.
A transferência do chafariz
A transferência não foi isenta de polémica. Foi deslocado, diziam, com prepotência, da aldeia para a cidade.
Outros diziam que o chafariz estava na Vela, mas não era da Vela, era de particulares que o resolveram vender. Enfim…
O projeto de transferência esteve a cargo do Eng. Ribeirinho Soares, um dos responsáveis pelo Albergue e ao mesmo tempo diretor dos serviços técnicos da Federação dos Municípios Beira Serra.
Perante a contestação do povo, uma parte significativa do conjunto arquitetónico não foi transferida para a Guarda e nunca chegou a receber a atenção merecida, mesmo das entidades oficiais. Aliás, ao ser feita a sua classificação como Imóvel de Interesse público foi omitida esta parte importante do conjunto arquitetónico que, por certo, lhe daria ainda maior monumentalidade.
O conjunto do Lar da Vela é formado por dois elementos artísticos distintos, mas perfeitamente enquadrados, que realçam a sua elegância e formosura. Ladeiam a entrada principal do “terreiro”, como antigamente era conhecido. Por ali passavam as procissões da aldeia, como que rendendo homenagem àquela família poderosa, mas também protetora. Mas este espaço tem ainda mais encanto pelas muitas histórias que há para contar.
Dois inimigos figadais
Duas das principais figuras nacionais da época, o General Saraiva Refoios (liberal) e o General Álvaro Póvoas (absolutista), nasceram na Vela.
Na quinta onde se encontra o Lar vivia o General Saraiva Refoios, ao lado, separada por uma estreita rua, ficava a casa e quinta do General Póvoas.
Apesar de inimigos figadais resolveram passar os últimos anos das suas atribuladas vidas juntos, um em frente do outro, nas respetivas quintas. Odiavam-se, mas tinham que se aturar. O general Saraiva Refoios chegou a mandar colocar numa chaminé uma estátua grotesca de um boneco que ficou conhecido por Moiro da Vela, só para atirar fumo para a casa vizinha e irritar com a sua presença o General Póvoas.
Mataram e gastaram fortunas na defesa das suas convicções. O general Refoios morreu em 1842 e o general Póvoas em 1852.
Referências:
– Resenha das famílias titulares do reino de Portugal, 1838
– ANTT, Registo Geral de Mercês de D. Maria I.
– ANTT, Registos Vinculares.
– Arquivo Distrital da Guarda.
– Atas da Câmara Municipal da Guarda.
– Heráldica e Genealogia. Divulgação de Heráldica, Genealogia e História.
*Investigador da história local e regional