A ensaísta e escritora, com raízes em Gagos, no concelho da Guarda, publicou, em 2022, um «romance histórico», que narra o calvário do famoso jurista e político italiano, cujo assassínio, em 1978, tem gerado teorias da conspiração até hoje. Tal episódio, ainda envolto em mistério, deixou feridas na memória coletiva italiana, à semelhança daquelas deixadas pelo Acidente(?) de Camarate, em 1980, na memória coletiva portuguesa. Vivia-se então em plena Guerra Fria, países da Europa ocidental assistiam ao ativismo político violento surgido na década de 60. Eram os chamados «anos de chumbo», com extremistas, quer de esquerda, quer de direita, a praticarem a luta armada e centenas de atentados. Na Itália, as Brigadas Vermelhas davam que falar. Quem sustentava tais grupos e para que fins?
«Não matarás!» é o título interpelativo e irónico deste romance de Teresa Marques, o segundo da sua bibliografia, tomado de empréstimo ao quinto mandamento do Decálogo. Irónico, porque o preceito contradiz o subtítulo: «romance de um crime». Interpelativo, porque se trata de uma narrativa sobre uma morte que contou com o beneplácito de representantes de um Estado de Direito e do Vaticano.
Ao lado de Aldo Moro, o então presidente do partido da Democracia Cristã, retratado como político íntegro, dedicado pai de família, humanista católico e professor admirado e respeitado por alunos e colegas, contracena Anna Lisa, aliás Letizia, uma personagem literária, tão cativante como moralmente ambígua no início da trama. Moldada a partir de exemplos e estórias de vida de que a autora teve conhecimento, Letizia evoluirá, superando os seus traumas e condição de agente dupla, na senda do triunfo sobre si mesma, porque se rege por valores positivos, como a inteligência, a coragem, um forte espírito de sobrevivência e sentido de missão.
Sabendo o leitor, de antemão, como começa e acaba o trágico episódio com Moro, como justificar tal empreendimento romanesco? Fazendo recair o interesse do romance na arte de contar, recriar ambientes e questionar o desconhecido. Ao longo dos 40 capítulos breves do livro (+ 1 de caráter meta-literário), perfazendo um total de 294 páginas, Teresa Marques lança mão de toda a sua inventividade para tornar a narrativa mais envolvente. Revela a psicologia do sequestrado através das cartas dirigidas a familiares e outras entidades que escreve em cativeiro. Alterna pontos de vista de narradores, entre a visão de dentro do episódio do sequestro e uma de fora. Narrativiza e questiona esse enigma, assumindo, através da ficção, o dever cívico de «querer perceber e saber mais» sobre o sucedido. Reconstitui a vida política, social e intelectual da Itália dos anos 60 e 70, por via de nomes de instituições, pessoas e lugares, apontamentos gastronómicos e locuções em italiano. A isso tudo acresce o singular percurso de vida de Letizia que, depois de ter conhecido «o inferno em Matera», de ter passado pelo purgatório, ao viver duras provas em Roma, se refugia em Lisboa, onde, finalmente, se sente como se estivesse no paraíso. A escolha de Portugal como novo destino deve-se ao facto de um seu tio-avô chamado Enrico Petronillo ter-se mudado para esse país e a vida ter-lhe corrido bem. Curiosidade: a estória de Enrico é desenvolvida no conto «Casamento Secreto», que a autora publicou em 2021, na coletânea «Rua do Encontro – Ficções da Guarda».
O romance sublinha a visão conspirativa da política e a ação clandestina de influenciar as elites do poder. O «compromisso histórico» que Moro assinara com Enrico Berlinguer, líder do Partido Comunista Italiano, para fazerem frente à crise económica e a grupos terroristas, indispunha os blocos político-ideológicos de então. No contexto da época, a postura e o objetivo de Moro atrapalhavam vários interesses. A nível externo, irritava a CIA, a NATO e o KGB; a nível interno, afligia uma loja maçónica, a máfia, o banco do Vaticano (IOR), a Guardia di Finanza, correligionários e adversários políticos, bem como movimentos extremistas. Nesse sentido, «Não Matarás!» apresenta-se como um romance histórico e político, revelador dos perigos da ingerência estrangeira e das tensões e ameaças a que as democracias liberais estão sujeitas.
Tudo somado, este livro de Teresa Marques alia vários subgéneros narrativos: romance histórico – situa-se na Itália dos anos 60 até inícios do séc. XXI e revisita o caso Aldo Moro; espionagem – encena a infiltração de uma agente no sequestro de Moro que consegue subtrair «documentos secretos», e põe em evidência o perfil dos sequestradores, de certos mandantes coniventes com o rapto e a personalidade do sequestrado; político – trata dos bastidores da luta pelo poder, da defesa de interesses ocultos, da razão de Estado e da manipulação da opinião pública; reportagem – nasce de um aturado trabalho jornalístico levado a cabo pela autora, sendo que esse jornalismo de investigação está não só representado na narrativa por um académico lusitanista como também na capa inspirada na estética do livro-reportagem, que se propõe revelar um segredo impactante. Na verdade, a questão dos subgéneros romanescos é secundária, porque o romance contemporâneo, ao desconstruir verdades convenientes, discutir questões éticas e sociais e reunir principalmente muito material humano, tende a miscigená-los.
Em relação ao seu primeiro romance «A Mulher que Venceu D. Juan», de 2013, «Não Matarás!» mantem as mesmas qualidades de discurso e idênticos recursos de ficcionalização: engenhosidade na urdidura de tramas surpreendentes; enunciação precisa, sóbria e com vivacidade; atribuição de papéis relevantes no enredo a perfis oriundos do mundo académico, que a autora conhece bem; reflexões sobre ideias feitas contrariadas por um saber de experiência feito; referências a clássicos da Literatura universal enquanto alicerce para o conhecimento útil e o pensamento criativo; finalmente, um gosto especial em desmascarar manipuladores, «tartufos» e cobardes, que acabam vencidos por uma mulher que foi vítima das suas manigâncias, mas que ganhou coragem para se defender e não desistir da sua dignidade e direito à vida.
Um romance de Teresa Marques é, a bem dizer, garantia de leitura aprazível e instrutiva, que não renega o papel de lançador de alerta!