O ano sem comboio

“a modernização da Linha da Beira Alta demora mais tempo do que a sua construção (no séc. XIX)”

O adiamento da reabertura da linha da Beira Alta, assumido pela IP, é um golpe na mobilidade ferroviária regional e internacional e o clamoroso reconhecimento de incapacidade, mesmo admitindo que a Covid-19 e a guerra obriguem a constantes adequações do plano de trabalhos. «Já não é em janeiro de 2023 que vai reabrir a circulação na Linha da Beira Alta», (noticia publicada no passado dia 6 no site de O INTERIOR – https://ointerior.pt/regiao/adiada-reabertura-da-linha-da-beira-alta-entre-a-pampilhosa-e-a-guarda/ ) – pode não ser razão para um “levantamento de rancho”, mas merecia um protesto generalizado.
Mas até quando? Ninguém sabe. Ninguém quer saber… Ainda que se saiba que a IP informou as empresas de transporte ferroviário (CP, Medway, Takargo e Fertagus), através do diretório de rede, que em 2024 haverá ainda «afrouxamentos e interrupções de via» para prosseguir com os trabalhos na linha. Ou seja, a reconstrução da Linha da Beira Alta vai continuar, devagar, até pelo menos 2024 sem que ninguém se preocupe com a inatividade da mais importante ligação ferroviária internacional portuguesa, e sem a mobilidade a que a região e as populações têm direito.
Como se lia no “Público” (15 de novembro), «a linha foi encerrada em abril deste ano por um prazo de nove meses, mas agora o IP não se compromete com uma data para a sua reabertura». E, assim, a modernização da Linha da Beira Alta demora mais tempo do que a sua construção (no séc. XIX). Sim! À força de braços, com pá e picareta, tração animal, muito dinamite e suor, entre outubro de 1878 e agosto de 1882 construíram-se os 252 quilómetros da Linha da Beira Alta.
O Ferrovia 2020 previa que as obras tivessem início no primeiro trimestre de 2018 para ficarem concluídas no final de 2019. Mas a primeira consignação só ocorreu em julho de 2019 (Guarda-Cerdeira), em dezembro de 2020 foi lançada a obra Pampilhosa-Santa Comba Dão e a ligação Guarda-Celorico só foi consignada em julho de 2021. Desde então, aos soluços, e surpreendentemente sem trabalhos aos fins de semana ou durante a noite, aquilo que deveria ser um encerramento entre 19 de abril de 2022 e 19 de janeiro de 2023 é agora, reconhecidamente, sine die.
A reconstrução é integral. Mas os ganhos serão poucos… Na mesma bitola, com pontes novas e vias modernas, mas à velocidade do séc. XX, a nova Linha da Beira Alta foi pensada essencialmente para mercadorias, e nem o “amaciar” da curva de Cerejo (que era a curva mais intensa da ferrovia portuguesa entre Vila Franca das Naves e a estação de Pinhel), irá permitir maior rapidez a um comboio que tanta falta faz às populações entre Coimbra e Vilar Formoso.
O futuro até podia passar pelo projeto, tantas vezes anunciado, de uma suposta linha de alta velocidade, a construir entre Aveiro, Viseu, Guarda (ou Vila Franca das Naves porque a orografia não permite a aproximação à capital de distrito) e Salamanca. Mas o futuro não passa pela Linha da Beira Alta, e é pena! 1882 marcou o ano da chegada do comboio à Guarda. «O caminho de ferro da Beira Alta, que fazia a ligação da Figueira da Foz a Vilar Formoso, na fronteira com Espanha, era, nesse ano, inaugurado, dando mais um passo na concretização da tão ansiada ligação ferroviária Lisboa-Paris» (in “1882, O Ano do Comboio”). 140 anos depois, a Guarda vai sendo ostracizada e a região, em silêncio, fica a ver os comboios passar ao ritmo do Séc. XIX.

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

Leave a Reply