Número especial

Escrito por Diogo Cabrita

“As trevas andam perto de nós e a construção de uma lei forte, dissuasora da intolerância e defensora da liberdade é muito importante, mesmo que implique o transporte divertido dos vírus e os abraços ternos das famílias infetadas.”

A revista do Ministério Público dedicou, em junho de 2021, um número especial à doença. É uma revista de grande impacto porque perpassa muitas áreas do Direito. Germano Marques da Silva preocupa-se com as medidas excecionais e tenta analisar se elas colocam entraves nas garantias dos processos penais, diminuindo-lhes a justa relação e adequada sequenciação, que permite a acautelar os erros judiciais, convencer os destinatários da isenção, imparcialidade e coerência das decisões proferidas. A publicidade da audiência ou presença pública no julgamento é um dos garantes deste fim e esteve transformada em meios técnicos ou suspensa, com prejuízo da eficácia das decisões. É um artigo importante e preocupado na defesa do direito como interpretação da lei, que deve ficar balizado por jurisprudência, normas e princípios, boas práticas, mesmo na existência de emergência.
Sucedem-se depois diversos textos pintados de medo e possivelmente ainda próximos do começo da crise sanitária e económica que atravessamos. Susana Aires de Sousa é exemplo de que a vontade com pilares de medo pode gerar na contextualização da justiça em tempos assustadores. A preocupação do seu artigo está em punir os comportamentos e condutas «irresponsáveis». Parte do princípio de que vivemos uma situação ciclópica que obrigou os estados a tudo mudar e a construir um legado legislativo ao qual consubstanciava a construção da definição de saúde pública como bem jurídico (em que termos e de que forma) para ser aplicável a punição no desrespeito. Felizmente não estamos numa ameaça ciclópica, felizmente não estamos numa doença que nos leva a isolar e a estigmatizar os portadores, nem vivemos uma época de informação de um só sentido. O caminho da punição do indivíduo que causa perigo ao coletivo é algo muito perigoso se o peso do perigo estiver exaltado. Passaram nove meses e um momento difícil em janeiro/fevereiro de 2021, sobretudo pela multiplicação de circunstâncias da desgraça. Mesmo assim não foi o “walking dead”. Espero que no Ministério Público já muitos se tenham apercebido disso. Serve esta revista para preparar com ponderação e raciocínio o próximo desafio com vírus que haveremos de encontrar. Mas é uma revista que nos demonstra como o medo transporta desejos impúdicos sobre os outros. Os outros que não pensam como os amedrontados, os outros que não temem a morte, os outros que podem trazer a desgraça. O outro, se for peculiar, mais facilmente será estigmatizado. Imaginemos um vírus que gosta de melanina e torna os africanos transportadores – o racismo cresce. Imaginemos um vírus que chega com os homossexuais – discriminação ascende. As democracias dependem do vigor da lei e, portanto, as revisões constitucionais são um momento tenso e potencialmente perigoso. O sim de Biden em defesa de Taiwan é um sim que transporta a guerra e o desafio nuclear. As trevas andam perto de nós e a construção de uma lei forte, dissuasora da intolerância e defensora da liberdade é muito importante, mesmo que implique o transporte divertido dos vírus e os abraços ternos das famílias infetadas.

Sobre o autor

Diogo Cabrita

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