“No Seminário Maior”, de J. Tenreira Martins: o Homem não é uma ovelha

Escrito por Thierry Santos

Além de se dedicar a temas históricos e sociológicos, Tenreira Martins, um filho do concelho do Sabugal radicado na Bélgica, tem feito incursões na escrita literária. Publicou, em 2008, memórias ficcionadas da sua infância raiana, lançou, em 2017, um livro de contos subordinados ao tema “Rostos da Emigração” e, em 2019, deu ao prelo um conjunto de sonetos, inspirados igualmente na Diáspora portuguesa, de que se tornou, por via da escrita e da sua condição de português emigrado, um dos porta-vozes.

Em 2022 trouxe a lume “No Seminário Maior”, o seu primeiro romance que vem, talvez para respaldar tal estreia, precedido de dois prefácios assinados por catedráticos. A obra, estruturada em sete partes de tamanho quase igual, revisita a sua experiência de aluno no seminário da Guarda, como anunciado na capa do livro. Contada na primeira pessoa, com refrações autobiográficas e em modo de narrativa de formação – a exemplo de “Manhã Submersa”, de V. Ferreira –, a estória é protagonizada por Marcelo, um seminarista que testemunha, no seu processo de amadurecimento humano, o embate entre dois modos de encarar a ação pastoral: uma, inscrita na tradição tridentina, a outra, orientada para o reformismo do Concílio Vaticano II (1962-65).

O subtítulo «baseado em factos reais» cria desde logo um pacto de leitura entre o autor e o leitor. O primeiro compromete-se com o segundo a transferir na narrativa um testemunho das suas vivências, perspetivando o meio histórico e social em que evoluiu: a perseguição às ideias contrárias ao regime político instalado, o incómodo que a carta do Bispo do Porto criou a Salazar, o serviço que a carrinha da Gulbenkian prestava, a voga dos cineclubes, a proliferação de carochas nas estradas portuguesas, o crescente acesso à TV a preto e branco, o tabu em torno da guerra colonial, a emigração portuguesa para França, a popularização do gira-discos e as mensagens que a música pop e a canção de resistência difundiam, a PIDE com a sua técnica da «tortura do sono», o surgimento da telescola, a vinda de Paulo VI à Fátima e o denodo do Pe. Felicidade Alves.

Por meio de uma escrita clara e raramente conotativa, a estória começa com os últimos dias que Marcelo (16 anos) viveu no seminário do Fundão, transferindo-se para o da Guarda, e acaba, seis anos depois, na cena da audiência privada entre o próprio e o Bispo diocesano. À medida que vai tendo contacto com o mundo laico, sobretudo nas férias, Marcelo desenvolve uma visão crítica, abandonando a visão de candura que o caraterizava nas primeiras páginas. Além dos conflitos interiores que o seminarista vai gerindo, não se conforma, como muitos dos seus colegas, com as disposições retrógradas impostas pelos responsáveis da «Santa Casa» e decide sair do Seminário para prosseguir a sua formação, longe da Guarda, numa congregação religiosa adepta da renovação conciliar.

O retrato que faz da família, dos amigos, dos colegas e de uma certa Igreja progressista é claramente abonatória. Questiona o sentido do celibato sacerdotal, quando outras confissões cristãs não seguem tal norma. Se alude ao facto de poder haver jovens com tendências homossexuais a frequentar seminários, não há a menor referência a casos de abusos íntimos. Da imagem que elabora da «Santa Casa» guardense não saem bem nem o bispo conservador, nem os sucessivos reitores descompreensivos, nem o superior conivente com a PIDE.

Conforme se depreende do título, a figuração da Guarda importa menos do que o ambiente vivido no Seminário. Ainda assim, a narrativa permite ao leitor entrevê-la. Além do “Largo dos Correios”, onde «as camionetas iam chegando e partindo», nomeadamente as da Viúva Carneiro, seminaristas havia que tinham contacto com a urbe «através da catequese, da Conferência de S. Paulo, do escutismo». Caso soubessem tocar música, não lhes estava vedado o palco do Cine-Teatro, mas constituía, para o reitor, motivo de repreensão se um deles fosse visto com uma jovem num dos dois principais cafés da cidade: o Monteneve, onde convergiam sujeitos bem-postos e alunas do Magistério ou já professoras primárias, e o Mondego, com música de fundo e esplanada, «frequentado por pessoal mais jovem». Nesta cartografia da memória há referência a outros lugares como a Sé, o Hotel de Turismo, o Sanatório, o Paço Episcopal, o Colégio de S. José, as instituições de assistência social para crianças e jovens e a sede da PIDE.

Comenta-se ainda que a Guarda tem duas estações: a «do caminho-de-ferro e a do Inverno». Quanto ao clima: «Em Agosto, frio no rosto»; no Inverno, «é severo». Para as ocasiões, há bola parda no gabinete do reitor.

Lida a última página do livro, poderá o leitor ficar tentado a perguntar: porque será mais fácil encontrar motivos para sair da Guarda do que para ficar? Sair da Guarda até pode ser uma bênção, se houver porventura condições para regressar, como quem chega pela primeira vez…

Thierry Santos

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