No centenário da morte de Santa-Rita Pintor (1893-1918): A Guarda revela ao país obras inéditas do introdutor do Futurismo em Portugal

Escrito por João Mendes Rosa

Santa-Rita no seu atelier em Lisboa, acabado de regressar de Paris (c. 1914)

Em 2018 decorre uma centúria sobre o ano em que, prematuramente, aos 28 anos de idade, desaparecia do panorama europeu das artes plásticas o fascinante, excêntrico e enigmático introdutor do Futurismo em Portugal – Guilherme de Santa-Rita ou simplesmente Santa-Rita Pintor (1893-1918). O Estado português – e as contiguidades culturais que gravitam em seu redor – eximiu-se a qualquer tributo em louvor de quem foi, em Paris, entre 1910 e 1914, uma figura proeminente dos movimentos trasformacionistas do pensamento artístico modernista, privando – a instâncias a que nem Amadeo de Sousa-Cardozo conseguiu ascender, diga-se – com Picasso, Braque, Picabia, Mondigliani, entre outos – sendo íntimo do poeta Guillaume Apollinaire, um dos nomes mais relevantes da vanguarda literária parisiense e que colaboraria mesmo no mais arrojado projeto editorial de que há memória em Portugal – a revista “Portugal Futurista” (1917) – do qual Santa-Rita foi o principal fautor.
Ainda em Paris, Santa-Rita não deixa de conviver com o seu compatriota Mário de Sá-Carneiro (que se inspirará nele para a personagem Gervásio Vila-Nova de “A confissão de Lúcio”, 1914). Ao tempo, a “Ville Lumière” está ao rubro e Santa-Rita encontra-se no epicentro do fenómeno transformista. Conhece Marinetti, participa nas suas acaloradas conferências na Galerie Berheim-Jeune e adere aos princípios que aquele proclama. Em 1912 exporia supostamente pela primeira vez e tê-lo-á feito no “Salon des Indépendents” com a obra “Ruído num quarto sem móveis” – cujo paradeiro se desconhece
Dando-se, entretanto, a implantação da República, e decorrente de desentendimentos que o nosso artista desenvolvera com o embaixador de Portugal, João Chagas, vê a sua bolsa ser-lhe suprimida e é obrigado a regressar a Portugal em 1914. Já em Lisboa, lança mãos da tarefa de publicar o “Manifesto Futurista”, ao que parece, mandatado pelo próprio Filippo Marinetti, afã que circunstâncias adversas malograram. Em 1915 Santa-Rita integra com Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Luiz Montalvôr, entre outros, a revista “Orpheu”, da qual se publicaram dois números, correspondentes aos primeiros dois trimestres daquele ano, sendo o terceiro número cancelado devido a dificuldades de financiamento. A revista balizaria um dos momentos mais determinantes da cultura portuguesa do séc. XX: o seu vanguardismo inspirou movimentos literários e artísticos subsequentes de renovação da cultura portuguesa, marcando o que ficou conhecido pelo nome de “Geração de Orpheu”. A 14 de abril de 1917 Santa-Rita seria um dos organizadores da “1ª Conferência Futurista”, realizada no Teatro República (Teatro São Luiz), em Lisboa, na qual são apresentados os princípios futuristas e é lido o “Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX” por Almada Negreiros, que entretanto se tornara um dos maiores seguidores e admiradores de Santa-Rita.
Entre novembro e dezembro desse ano Santa-Rita prepara o lançamento da revista “Portugal Futurista”, verdadeiro libelo da corrente, na qual participam vários ícones da geração de “Orpheu” e onde figuram excertos traduzidos de Marinetti, Boccioni, Carrà, Russolo e Severini. Nela colaboram Bettencourt Rebello, Almada Negreiros, Fernando Pessoa, Amadeo de Souza-Cardoso, Raul Leal (contando ainda com três poemas de Mário de Sá-Carneiro, falecido no ano anterior). Destaque-se ainda a participação de reconhecidos autores estrangeiros como Guillaume Apollinaire e Blaise Cendrars, a inclusão do “Manifeste des Peintres Futuristes” e do manifesto futurista “Le Music-Hall”, de Marinetti (Milão, 29 de setembro de 1913).
Acometido de tuberculose pulmonar, em 1918 desaparecia um dos verdadeiros génios do criacionismo modernista europeu que, como último desejo, deixou expresso ao seu irmão Augusto a vontade de queimar toda a sua obra modernista, sobrevivendo apenas – pelo menos assim se julgava, ao tempo – “Orpheu dos Infernos” (c. 1907?) e “Cabeça” (1912?).
Mas neste apagado e indolente ano jubilar, um agregado de férreas vontades não permitiu – à margem das instituições culturais portuguesas – que passasse em claro tão expressiva data. Mercê de diligências promovidas desde 2016 pelo signatário do presente apontamento, em concomitância com Fernando Rosa Dias (que encabeçou a iniciativa), secundado por outros investigadores, como o arguto e diligente biógrafo de Santa-Rita, João Macdonald, acrescidos de alguns familiares do pintor, foi possível realizar na Faculdade de Belas Artes um colóquio de reflexão acerca de tão determinante quanto enigmático pioneiro da arte modernista europeia.
O Museu da Guarda, ao cabo de um ano de investigações, não querendo dar por findo o ano do centenário do desaparecimento de tão laureada figura sem um justíssimo tributo de reconhecimento, homenageia-o na terceira edição do Salão de Outono “Aberto para Obras” (7 de novembro de 2018 a 8 de janeiro de 2019) com uma relevante particularidade: tendo sido recentemente identificados três desenhos inéditos de Santa-Rita, propriedade dos herdeiros do colecionador Américo Francisco Marques, que as terá adquirido ao pintor José Campas a 7 de maio de 1958 e que este comprara, por sua vez, diretamente a Santa-Rita em Paris, no ano de 1914 – quando o pintor experimentava já sérias dificuldades no seu sustento, por certo inerentes à inopinada cessação da sua bolsa de estudos, por decisão do embaixador João Chagas, que lhe havia sido atribuída em abril 1910 pelo Estado Português. As três obras serão exibidas pela primeira vez na cidade mais alta a partir de 7 de novembro.
Uma palavra de louvor aos herdeiros do conhecido colecionador Américo Francisco Marques, designadamente sua viúva e filhos, por todas as facilidades atinentes a que as mesmas possam ser exibidas no Museu da Guarda, precisamente 60 anos depois da sua (silenciosa) aquisição. Um penhorado agradecimento se deve também ao proprietário da obra “Orpheu dos Infernos” (c. 1907?), Armando Martins, pelas facilidades concedidas para a presença de tão emblemática obra na referida mostra.
Porque o interior também é Portugal, doravante, para se ver obra inédita de Guilherme de Santa-Rita é necessário vir à cidade mais alta…

* Escritor

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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