1. Cuidado com as pessoas de um só livro, diz a sabedoria milenar. Falta a sua inventariação actualizada: fundamentalistas, negacionistas, milenaristas, Franciscos Louçãs e adeptos das teorias da conspiração. São estes últimos o tema deste comentário. Julgam possuir a verdade antes de tempo, por causa de informações exclusivas a que o cidadão comum não tem acesso, mas que eles, teasers perfeitos, anunciam urbi et orbi. E se, por obra do acaso, alguma alucinação do seu repertório se veio revelar parente remoto dos factos, crêem-se os pioneiros de uma nova religião revelada: “nós bem avisámos!” O mundo real, para eles, é uma ilusão. O que conta é uma realidade paralela, cifrada, elíptica, retorcida, de que têm a chave e sobre a qual não admitem contraditório. Ou seja, não é só “eles é que sabem”. É também, “só eles é que podem saber”. Este ambiente sigiloso e redentor serve menos para persuadirem terceiros do que para se convencerem a si próprios que a sua ignorância tem algum préstimo. E que a sua arrogância está justificada.
2. O episódio é delicioso. Um eurodeputado da direita nacionalista húngara foi apanhado num festim gay, em Bruxelas, com 25 homens nus, em frente à uma esquadra de polícia, e tentou depois fugir por um algeroz com uma mochila cheia de droga. Tenho lido muitos comentários nas redes sociais, a propósito deste coup de théâtre. A maioria são das habituais virgens ofendidas da esquerda cultural. Que, no essencial, assentam no seguinte: só pode ser gay quem for de esquerda; um eurodeputado gay tem que ser activista da “causa”; um gay de direita tem que fazer um mea culpa por ser gay e por ser de direita; um eurodeputado de direita não pode ter vida privada; um político de direita que não exponha a sua identidade sexual aos quatro ventos, é um hipócrita; a direita tem que ser puritana todos os dias, mas a esquerda pode sê-lo só durante a semana. Acrescento um nec plus ultra. Segundo Becket, um moralista é um sujeito que coça onde os outros têm comichão. Certo. Mas há também os falsos moralistas, que só conseguem apontar para onde os verdadeiros coçam.
3. Vi algures uma foto, já com algumas décadas, em que um senhor de idade levava a mão ao chapéu, em modo de cumprimento respeitoso, ao passar diante de uma igreja, na cidade onde vivo. O quadro impressionou-me. E comoveu-me. É um gesto de uma dignidade antiga, inapreensível pelo frenesi egocêntrico e autolegitimador que nos tolhe. Lembra-nos a nossa dimensão e repõe o nosso lugar numa ordem cósmica. Através de uma grandeza singela. A imagem transportou-me para uma situação que presenciei numa cidade dos confins da Roménia, há uma anos. Com espanto, observei que, diante uma bela igreja de perfil bizantino, quase todos os que passavam se persignavam à maneira ortodoxa. Novos e velhos, homens e mulheres. Algo que, suspeitei, deixou de ser prática no Ocidente há bastante tempo. Até ver essa foto.
4. O amor romântico é uma invenção recente. Nasceu no séc. XIII, como convenção estilística, com os trovadores provençais. Desde então, tem ocupado o imaginário do Ocidente como nenhuma outra criação. Da arte à literatura, da iconografia à moral, do imaginário ao marketing. Tudo se anuncia com a boca cheia de amor. Os antigos, para quem estes artifícios não existiam, eram bastante mais práticos. Para eles, só existia, e bem, o erotismo e a contemplação da beleza. O amor só atrapalhava a equação. Hoje em dia, o amor democratizou-se. Do refinamento lírico passou para a música pimba e as telenovelas com uma facilidade inaudita. Toda a gente ama, ou diz que ama, ou ambiciona amar. Há toda uma indústria montada para alimentar esses estados de alma. Acontece que os antigos tinham razão. O amor é uma convenção datada. O preço que o desejo tem que pagar à virtude. O que realmente existe é o erotismo, a negociação, o hábito e o pavor do desamparo. E depois, em casos raros, a dedicação sem condições.
5. “A Poesia e a Verdade” é o subtítulo da autobiografia de Goethe. Embora não aprecie tamanha solenidade, sei bem onde o genial poeta de Weimar quis chegar. Mas cabe perguntar, nem que mais não seja como exercício maiêutico: afinal, os gráficos e as estatísticas são o quê? Os sonhadores dirão que são simples entretenimento. Os cínicos dirão que, fora das estatísticas, a verdade tem sempre o rabo de fora. Os mistificadores que é tudo relativo. Os alucinados que a verdade ainda está para vir. Os estatísticos propriamente ditos não dizem nada. Eu tenho uma ideia: a estatística mede, mas a poesia calcula; a estatística serve, mas a poesia funda, recria e destrói.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia