Ninguém cai para o céu

Escrito por Fidélia Pissarra

«Uma depressão implica sempre uma elevação, configurando os altos e baixos, nem sempre sucessivos, de qualquer caminho que não tem, necessariamente, de ser tortuoso por causa disso»

Uma depressão implica sempre uma elevação, configurando os altos e baixos, nem sempre sucessivos, de qualquer caminho que não tem, necessariamente, de ser tortuoso por causa disso. Ainda assim, acontece que a velocidade com que o percorremos depende delas e de mil e um outros fatores que não controlamos e, na maioria das vezes, de que não nos apercebemos. Não fora por isso, ninguém se indignaria com o atraso do comboio, com a demora do almoço ou com a morosidade do funcionário que nunca mais se despacha. Em sentido contrário, ninguém exultaria, como nunca acontece, com a pontualidade prometida, com o almoço pronto a comer ou com a diligência do funcionário. Em boa verdade, nenhuma das atitudes nos adianta seja o que for, porque nem a indignação apressa nada, nem a exultação atrasa algo. Como diriam as nossas avós, sábias da morte e, mais ainda, da vida, é o que é.
Se, há 50 anos, a Guarda não acabasse no Sanatório de um lado e na Dorna do outro, diríamos que não era só a altitude a elevá-la. O que lhe ajudava à elevação, e muito nos envaidecia, era mais o ser a capital de um distrito com duas cidades e umas quantas vilas. Raros eram os guardenses que a ela regressavam depois da incursão estudantil por terras de Coimbra ou mais além, mas todos se diziam vaidosos de aqui ter nascido. Hoje, estendida do Cubo ao Torrão, mas, principalmente, até à Sequeira, capital de um distrito com umas quantas cidades, passou de “elevada” a “deprimida”. Já ninguém se lhe refere como a capital de distrito, ou, sequer, como uma cidade da “Beira Interior”. Somos, tão só e apenas, “território, demograficamente, deprimido”, porque, lá está, para baixo é sempre a descer e todos os santos ajudam. Santos à parte, importa salientar que, afinal, parece que não é só a distância que depende do tempo, os altos e baixos também. Se assim não fora, o que ontem era elevado, não seria hoje deprimido. Ou, então, nem ontem era elevado, nem hoje é deprimido. Também pode ser. Seja lá o que for, do que já não há dúvida nenhuma é que os apelidos importam. E muito! Há os sonantes e os que se calam, se escondem, para ninguém lhes ligar nenhuma.
Num mundo de ambições banais, costuma enaltecer-se o que ajudar à empreitada mais tenebrosa e depreciar-se o que interessar à empreitada mais necessária. Só assim se explica que, simultaneamente, se proclame a urgência da descarbonização da economia, para obstar às alterações climáticas e à diminuição da biodiversidade, e a dispersão humana pelo território. Porque, das duas, uma: ou bem que queremos lobos e raposas, ou bem que queremos vinho e azeite. Os dois, ou quatro, como pretenderem, é que são incompatíveis e, de certa maneira, antagónicos. E escusam de vir cá com a dos fogos e outros cataclismos que tais. Agora, o que é, mesmo, escusado é virem cá com a dos “territórios, demograficamente, deprimidos”. Por um lado, por nesse cômputo demográfico se considerarem apenas os humanos e se desprezarem as outras espécies, por outro, por aparentar quererem fazer-nos sentir menos do que aquilo que somos. Sendo que esta última até já cheira à vigarice de quem, menorizando o outro, mais não quer do que agigantar-se em magnânimas caridades. A sério, “territórios deprimidos”, a mais de mil metros de altitude? Só se forem os vales…

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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