Ainda que mais por convicção, do que pela irrefutabilidade dos factos, assumo que não é sem alguma relutância que reconheço razão a Umberto Eco, quando afirmou terem as redes sociais permitido a qualquer idiota apregoar, aos quatro ventos, todas as idiotices, próprias ou alheias, que a tasca das antigas conversas lhe encolhiam.
Promovendo ajuntamentos virtuais de atoleimados, aparentemente, as redes socias, em vez de aproximarem pessoas, de servirem para formar e informar, têm potenciado os danos causados pela ignorância que alimenta o racismo, a xenofobia, a misoginia e outras hostilidades várias de quem considera que a liberdade assenta no seu controlo sobre a vida dos outros. Provavelmente, a natureza destes danos terá sido sempre a mesma, a sua dimensão e impacto é que já terão sido bem menores. De qualquer forma, fosse por a distância, que sempre mantive de certas mesas de café, me ter protegido, fosse por a realidade já ter sido outra, nunca antes das redes sociais me apercebera de tamanhas fragilidades nos princípios democráticos e valores humanistas. Apercebimento que, de resto, antes da cerimónia de abertura dos últimos Jogos Olímpicos de Paris, me trazia até bastante acabrunhada. Felizmente, aquilo nada teve a ver com o cartaz de há cem anos a anunciar os Jogos: oito mãos direitas levantadas, na ponta de uns braços masculinos e brancos.
Afinal, em cem anos muita coisa melhorou. Ao olharmos para aqueles rapazes de mãos erguidas ao céu, numa estética de época que talvez possamos situar entre MussoIini e o Sebastião, o do Barão de Lavos, entenda-se, reparamos que hoje seria impossível vermos apenas jovens brancos, como aqueles, a representar um certo ideal de beleza masculina, a anunciar os Jogos Olímpicos que terminam e cuja cerimónia de abertura confirmou serem universais, inclusivos e, acima de tudo, modernos. Hoje, conceber e apresentar aquele cartaz não passaria pela cabeça de ninguém. A não ser, talvez, pela dos que se arrogam o direito de, em nome da própria liberdade, interferir nas liberdades individuais, de, em nome da nacionalidade, recusar a convivência com os outros, de, em nome de uma pseudociência religiosa, interferir com a orientação, sexual ou outra, de quem quer que seja.
Só se passaram 100 anos, não foi assim há tanto tempo. Imagens como as daquele cartaz ainda são familiares para muitos de nós. Pudemos observá-las em postais, em anúncios publicitários ou em colecções de cromos na nossa infância, quando ser mulher, de outra etnia ou com orientação sexual distinta daquela para que a identificação civil apontava ainda era equiparado a ofensa grave, aos valores cristãos, a um crime de lesa pátria, passível de ser punido pela justiça, dos homens e dos céus, perita em excluir e erradicar todos os que lhes não conviessem.
Bem se sabe, sobretudo pelas redes sociais, que ainda há muito quem queira voltar a esses tempos ou que de lá nunca tenha saído, sequer. Contudo, por enquanto, parece que os que não conseguiram ver a última ceia, nem o cavalo da morte no espetáculo da abertura dos Jogos são muitos mais do que esses. E, enquanto assim for, para desconsolo dos Putins, Trumps, Venturas, Abascales, Musks – e outros que tais – não raramente amparados por juízes, mais dados ao justicialismo do que ao Direito, dificilmente se andará para trás.
“Não podemos andar para trás”
“Ainda que mais por convicção, do que pela irrefutabilidade dos factos, assumo que não é sem alguma relutância que reconheço razão a Umberto Eco, quando afirmou terem as redes sociais permitido a qualquer idiota apregoar, aos quatro ventos, todas as idiotices, próprias ou alheias, que a tasca das antigas conversas lhe encolhiam.”