Muin

” Meio do caminho não quer dizer ao meio. Isto não é o jogo da corda. Significa algures. Mesmo assim, estamos a falar de uma categoria inapropriável. Em caso algum depende inteiramente de nós. Mas só depende de nós descobri-la. É fundamental saber dançar essa dança cheia de surpresas.”

Marta Temido demitiu-se. Que linhas lhe dedicará a História? Uma ministra esforçada? Incompreendida? Vítima não declarada da pandemia? A última pergunta é fácil de responder. A pandemia foi o abono político de MT. Só não fosse a Covid, a ministra não seria sequer reconduzida no cargo. MT não era propriamente Ministra da Saúde, mas do SNS. Lidava com o SNS como uma mãe superprotectora com o filho dileto. De tanto o querer proteger de ameaças infundadas, esvaziou-o. Retirou-lhe o vigor. Criou um gigante enfermiço e incapaz de responder ao que lhe era pedido. Quis livrá-lo das más companhias, leia-se sector privado, apaparicando-o com mimos e prendas, num sorvedouro de gastos que nada resolveu. Tanto desvelo, tanto receio de reformas verdadeiras, tanto pavor da integração dos vários sectores, próximo do dogmatismo ideológico, descambou no que se sabe: anemia e imobilismo. Outra coisa. A responsabilidade política de um governo é, no essencial, colectiva. E o primeiro e último responsável é o PM. A execução das políticas sectoriais, definidas em CM, põe à prova as capacidades políticas e técnicas dos vários ministros. Dependendo a sua longevidade da conjuntura política, do tipo de perfil, ou da gestão de imagem do governo. Por outro lado, o sucesso de um ministro aproveita ao colectivo. Como que se dilui na equipa, sendo o PM o seu principal beneficiário. Mas tem um rosto, de que o eleitorado se irá lembrar no futuro. Já a gestão do insucesso é mais complicada. O PM pode isolar politicamente um ministro, mantendo-o em quarentena, o tempo suficiente para uma gestão de danos, seguida de uma remodelação. Foi o que aconteceu com Constança de Sousa, por causa dos incêndios de Pedrogão. Ou pode servir de para raios, até a permanência se tornar insustentável, como aconteceu com o Ministro Cabrita. No caso de MT, foi uma situação híbrida. A sua demissão não foi programada, embora as reformas que se anunciavam sugerissem um balão de oxigénio oferecido por Costa, em nome da estabilidade interna do Governo. Daí a sua preocupação em manter MT em funções, até à aprovação do pacote legislativo em discussão. É importante perceber que há ministros com perfil predominantemente técnico, versus político. É um problema de espécie. Há ministros com low ou high profile. É uma questão de grau. Há ministros cuja lealdade ao PM é pessoal, pretoriana, versus, em grande medida, política. É um critério, digamos, de distância. A distinção entre “independentes”, ou “militantes”, não interessa nestas contas, mas só para a accountability final. Costa prefere claramente o baixo perfil e o círculo próximo. É uma opção. Mas tem custos. No caso de MT, embora independente, nem por isso a sua filiação ideológica se fez menos notar. Não descansou enquanto não acabou com as PPP. Fugiu a sete pés da contratualização com privados para os cuidados de saúde extra Covid, relativamente a doenças graves, na altura da pandemia. Período em que tornou o SNS numa espécie de SNCOVID, negligenciando tudo o resto. Não acautelou a gestão de recursos humanos. A lista podia continuar. Sobra a questão de fundo. O Estado Social, na sua versão mais moderna e eficiente, evoluiu para um modelo em que o Estado GARANTE determinados serviços públicos, mas não tem necessariamente de os prestar, por si próprio. É este o conceito adoptado nas políticas de saúde pela esmagadora maioria dos países europeus, com excepção do NHS britânico, do qual o nosso SNS foi decalcado. Implementar este modelo implica a integração dos vários sectores da saúde. Ou seja, reformas. Palavra pestífera para Costa.
2. A importância real que nós temos para os outros quase nunca é a que julgamos. Seja qual for a proximidade, o tipo de relacionamento, as afinidades e a largura da banda, essa importância é sempre medida a meio do caminho. E se insistimos em vê-la onde ela não está, ou vice-versa, é porque estamos tão fechados em nós próprios que ignoramos os sinais que lá estão. Porque só queremos ver aquilo que desejamos. Meio do caminho não quer dizer ao meio. Isto não é o jogo da corda. Significa algures. Mesmo assim, estamos a falar de uma categoria inapropriável. Em caso algum depende inteiramente de nós. Mas só depende de nós descobri-la. É fundamental saber dançar essa dança cheia de surpresas.
3. Dizemos “e tudo se desmoronou”. É verdade. Parece um mistério ao contrário. Começamos pelo fim e vamos colocando à volta os destroços e a poeira, em círculos concêntricos. Como se a opacidade fosse um luxo. Então, pensamos que a casa nunca se desmorona totalmente. Mesmo quando nada fica de pé, o estrondo é difícil de esconder e nada ficou para contrabandear. Nem sequer um último trago de magia, ou o rasto dos perfumes do fim da tarde. Mas não é assim. Fazer de conta que os escombros não estão lá é o mesmo que imaginar que sempre lá estiveram. A vertigem da queda é prosaica e quase sempre brutal. Sem metáforas. Pois as palavras de consolo são, ainda assim, uma manobra de diversão. Mas às vezes, é o que nos resta. Porque a casa ruiu connosco lá dentro. E haverá ainda palavras para quando sairmos de lá. A poesia não é a verdade, como dizia o bardo de Weimar, mas pode salvar.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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