1. Suceder a Marcelo vai ser um bico de obra. Até agora, só Marques Mendes se chegou à frente. O comentador tem gerido bem os timings da sua protocandidatura. Neste caso, sendo o primeiro já leva vantagem, pois condiciona quem aparecer no seu espaço. Entretanto, o Almirante Gouveia e Melo espreita de longe, varrendo o horizonte com binóculos de longo alcance. Sabendo que o episódio do navio-sucata na Madeira não o beneficiou. Portas também quer dançar no baile de gala, mas para já fica de pé, observando e lançando frases espirituosas sobre política internacional. Enquanto puxa o lustro aos galões. Como nas histórias das manas Bronte. Passos Coelho, o melhor candidato da direita e centro, é um enigma. Por sua vez, Santana anda por aí, mortinho por abrir o baile. Ventura, em jeito de moço de forcados, já disse que vai à pega. Na esquerda, o PS prepara um candidato de laboratório: Centeno. Um projecto com uma palavra tabu: cativações. E cujo prato forte vão ser as contas certas na paróquia. Santos Silva é um joker fora do baralho. Do resto não falará a história.
2. A liberdade de expressão foi pensada como uma manifestação acústica. Que a estática dos rádios não perturbou, nem a TV analógica impediu o curso. A era digital veio colocar problemas enormes. Todos se julgam com direito, não à opinião, mas a que os outros a tenham que conhecer. Isto sem saírem sequer de casa. Como um convidado num banquete de casamento que, embriagado, tira o microfone das mãos do padrinho e começa a desferir atoardas. E em vez da realidade pintalgada com interrupções, goles de cerveja, hesitações, compromissos provisórios, tudo ingredientes que compõem uma contenda verbal respeitosa, na era digital seguimos a via da destituição dos outros, do tribalismo, do empoderamento do discurso. Para uma explicação do fenómeno, socorro-me de dois conceitos que Jürgen Habermas desenvolveu exaustivamente: a noção de esfera pública e democracia deliberativa. De como são realidades interdependentes. Mas como conciliar este laço, a sua longevidade desta noção, no contexto de mediatização e expansão da esfera pública? Como pode subsistir uma categoria política pensada para um debate participado sobre o bem comum, “à luz do sol”, face ao surgimento de novos dispositivos digitais e plataformas virtuais, que permitem estabelecer formas inovadoras de comunicação em rede? Será que a esfera pública e, por extensão, a tal democracia deliberativa, ultrapassaram o prazo de validade, face à nova conjuntura mediatizada, onde muitas das interações no espaço público se desenrolam na internet ou, mais precisamente, através de redes virtuais, sendo as redes sociais a sua ferramenta de eleição?
3. Depois do beijo de Judas e o do quadro homónimo de Klimt, o chocho que Luis Rubiales pregou na jogadora Jenni Hermoso corre o risco de se tornar o terceiro ósculo mais célebre da História. Mas enquanto o primeiro só existe pelo simbolismo e como alegoria moral, e o segundo é um dos pontos altos da arte moderna, o último é falado pelos piores motivos. Repare-se na sucessão de desculpas, desmentidos e justificações dos envolvidos, comunicados da Federação Espanhola de Futebol, da FIFA, do primeiro ministro e outros políticos, comentários de jogadores e jornalistas. Espanha vive uma crise política sem precedentes. O seu desfecho terá consequências também para nós. Ainda assim, políticos e comentadores não perdem uma oportunidade para mandar bitaites sobre o episódio do beijo. Faltava esta senhora desbocada vir marcar o ponto. Já antes a mana Mortágua tinha lançado uma fatwa ao pobre Rubiales. Curioso é nenhuma destas exaltadas, nem a cintilante professora Varela, se terem pronunciado sobre o caso Boaventura. Conhecemos os pormenores das denúncias, o seu espaçamento temporal, as circunstâncias aviltantes, e a impunidade de que gozou o sociólogo. Mas nada disso parece perturbar a superioridade moral da esquerda bem-pensante. Porque o homem é um bom camarada, como é de crer. E com os “nossos”, impera a lei do silêncio. Que fique claro, Rubiales cometeu um acto irreflectido e imprudente. É tudo. Só a jogadora poderia exigir consequências, se essa fosse a sua vontade. Ou, simplesmente, dar-lhe uma estalada, diante de milhões de pessoas. O assunto ficaria arrumado. Mas para a senhora doutora Ana Gomes, o homem é praticamente um monstro e a jogadora uma pobre “vítima” do heteropatriarcado. O azar do dirigente desportivo é ser branco, heterossexual e cisgénero. E a jogadora, se quisesse realmente defender a dignidade das mulheres, dispensava a ambiguidade. Banalizado a real gravidade de comportamentos criminosos e dando espaço aos paternalismos ideológicos.
4. É comovente observar como há pessoas que confundem poesia com recitativos de autoajuda. Acredito que, com isso, julgam espantar a mágoa, ou alimentar a esperança, ou despertar uma magia informulada no fundo das coisas. Mas não é para isso que a poesia existe. Não espanta demónios, chama-os a si. Não alimenta nada, a não ser o tamanho do mundo. Nem se reduz a um desejo mágico, pois cria a sua própria magia.
*No calendário vegetal celta, significa “Videira”
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia