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«Vivemos tempos perigosos. O duplipensar e a novilíngua tomaram conta do espaço público, pastoreado pelo partido que controla o Estado»

1. Muita tinta fez correr a comunicação do prof. Nuno Palma no MEL. E o que disse o académico para que tal sucedesse? Que, no período entre 1960-74: A) Portugal convergiu economicamente com a Europa, crescendo a um ritmo sem paralelo na sua História e nunca atingido em democracia, mesmo no período em que convergiu novamente, entre 1989 e 2007. B) O analfabetismo infantil foi erradicado, com a população em idade escolar inteiramente escolarizada. C) A mortalidade infantil desceu para 43 casos em cada mil nascimentos. Todos estes números são verificáveis, foram validados logo na altura por agências e organizações europeias, maxime a OCDE, e mencionados em todos os estudos académicos isentos. Mesmo assim, a tralha do regime, o komentariado, com Pacheco Pereira em destaque, alguns dirigentes políticos e deputados vieram a público em modo aqui del’rei, acusando Nuno Palma de «branquear o fascismo». Vivemos tempos perigosos. O duplipensar e a novilíngua tomaram conta do espaço público, pastoreado pelo partido que controla o Estado. Que sabe bem que abdicou de reformar o país, optando pela estagnação e perda de competitividade. Fazendo o pais viver das ajudas europeias e da monocultura do turismo. Num panorama destes, nada tão perigoso como evocar as evidências do passado. Fazer comparações embaraçosas para o presente. Lembrar que o rei vai nu.

2. O importante é a rosa, já se sabe. A imagem é simples e poderosa. Tão eficaz que Barthes poderia tê-la incluído nas suas “Mitologias”. Mas deixemos as flores, o despertar lírico e o apelo esotérico. Tão importante como a rosa, é caminhar. Seguirmos a nossa trajectória, sem esperarmos pelo aplauso, ou temermos a censura. Espreitar o abismo, ou a graça, em cada novo verso, cada nova pincelada, cada novo acorde do alaúde, cada semente que deixamos cair, cada gesto delicado que ousamos oferecer. É possível que, deixados assim, como que na roda dos expostos, em levitação, desafiando o peso do mundo, todos os dias mais perto do segredo da leveza, consigamos um vislumbre da face de Deus.

3. É muito interessante estudar a evolução da ideia de NATUREZA ao longo da História. Em rigor, a noção de que esse mundo é o habitat da virtude e a antítese dos males da civilização, nasceu com o Iluminismo. Sobretudo com Rousseau. E logo aproveitada pelos românticos. Que cultivavam esse mundo natural como um santuário, um eco do passado. No entanto, para eles a natureza era uma abstracção, achada por exclusão de partes. E que partes? O pernicioso mundo da cultura, no sentido antropológico do termo. Não cabiam nesse conceito quaisquer intenções ecológicas, ou proteccionistas. Até porque, nesse tempo, a natureza encerrava recursos ilimitados. A ecologia, enquanto objecto de políticas públicas, e por muito que isto custe aos puristas, nasceu durante o regime nazi. Entretanto, vários autores, de Walden a Jünger, idealizaram a floresta como local de insurreição política e de renovação espiritual. Na segunda metade do sec. XX, a percepção da finitude dos recursos naturais e o imperativo da preservação dos ecossistemas veio alterar tudo. E potenciou fundamentalismos indesejados.

4. O desenho constitucional dos poderes presidenciais descende do célebre poder moderador atribuído ao monarca, na Carta Constitucional de 1826. A qual, por sua vez, foi decalcada da Constituição francesa de 1814. Onde se chamava “poder neutro”, designação criada por Benjamim Constant, seu mentor. Ou seja, um conjunto de atribuições de carácter unipessoal, destinadas a temperar a rigidez da separação de poderes, assegurar a governabilidade do país, escrutinar a acção do governo e arbitrar em caso de impasse na formação de maiorias nas Cortes. O termo “poder neutro” é simpático. Sugere força, equidistância, graça, destino, missão. Atributos, ao fim ao cabo, de um monarca

5. Há um tipo específico de pessoas a que chamo as “feras sorridentes”. Cultivam uma espécie de alegria regulamentar, pautada por um sorriso largo e histriónico. Mas esta joie de vivre é enganadora. A sua credibilidade cedo falece. Pois não há correspondência entre o que dizem os olhos e o que nos mostra um rosto contraído num espasmo forçado. De um lado, os olhos, alucinados, não conseguem esconder a angústia e o destempero. Do outro, os músculos faciais compõem uma máscara funerária. Pois não há vida na alegria fraudulenta. O que há é um rigor mortis sorridente e uniformizado. O contrário disto é o divino sorriso de Gioconda. A inteligência e a vitalidade jorrando, contaminando, inspirando. Sem alarde. Sem assustar. Sem obrigar a nada. A verdadeira proporção áurea da felicidade.

Sobre o autor

António Godinho Gil

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