Messidor

No início deste mês, zonas centrais da Guarda estiveram sem energia elétrica. Foi o meu caso, durante cerca de três horas. Mas para grandes males, grandes remédios. Nesse período de tempo resolvi provar a mim mesmo que seria possível continuar as tarefas domésticas, com um mínimo de perturbação, desde que acionasse o plano B. E em que consistia o plano B? Usar meios alternativos ao dispor. Quais? Um “laptop” com carga, uma lanterna de caminhada, um candeeiro de campismo, óculos com LED, robot de limpeza com carga, lâmpada USB, um altifalante “Bluetooth”, telemóvel com carga, fogão a gás. Deste modo foi possível: lavar a loiça com água aquecida no fogão, aspirar a casa, fazer o jantar, ouvir música, ler e ver televisão. Conclusão: devemos ter sempre, mas sempre, um plano B.

2. “Neo normalidade” é a mais recente aquisição linguística por via da pandemia. Já li por aí “viralizar”. Um brasileirismo curioso, criado por medida para o mundo virtual. Em especial para as redes sociais. Consigo imaginar a Ana Deus, vocalista dos saudosos Ban – liderados por João Loureiro, sim, esse mesmo – no tema “Irreal Social”, cantando «viralizar por aí», em vez de «surrealizar». Ou num cover imaginativo. Mas voltemos ao início. A neo normalidade. Onde cada um pode lá meter o que quiser. E poder ser cada vez mais o que nunca deixou de ser. Objectivamente, alguns comportamentos irão mudar. Deixarão de ser ditados pela emergência e passarão a ser regra cultural. E qual deve ser a atitude do cínico idealista, como no caso do escriba? Adaptar-se. Não desistir de acreditar em milagres.

3. O verdadeiro cínico tem como lema a “Autopsicografia”, de Pessoa. Sobretudo a última parte. Pois se a dor não fosse verdadeira, seria simplesmente um mistificador. Ora, o verdadeiro cínico é também, por tradição, um desastre nas chamadas relações amorosas. Embora a tradição já não seja o que era. Um desastre, porque se esforça para isso. Para a dor parecer verdadeira. Mas sabe que há um limite. De outra forma, passava por insensível. E a dor, que deveras sente, mais não seria do que estratégia. O limite do cínico é, pois, a razão da sua sustentabilidade. Finge a dor, porque sabe que, se não o fizesse, não seria levado a sério. Mas como não pode ocultar de si próprio a dor que não finge, nem desembaraçarse dela sem um pesado preço, prefere pagar a pronto e retomar o jogo. Até acabar o crédito. É este o seu segredo.

4. Há dias, vi uma parte do noticiário das 20.00 na SIC N. Durante 20 minutos, extensa reportagem sobre as circunstâncias da morte de Floyd, incluindo um documentário com imagens novas, um comício dos republicanos em Oklahoma, sem cumprir as normas de distanciamento, mais umas maldades de Trump, novamente uma derrota judicial do presidente, ao não conseguir a proibição da venda de um livro de um antigo funcionário da Casa Branca, os números da pandemia nos EUA e mais umas coisas sobre o Trump. Nem uma palavra sobre a situação no norte de Moçambique, na China, ou em Lisboa. Não sou adepto de teorias da conspiração. Mas é preocupante assistir à condescendência com que que grande parte da comunicação social acompanha a ofensiva cultural da extrema esquerda. Onde qualquer coisa é pretexto para atacar a democracia liberal e o “capitalismo”. Do “New York Times” a Carnaxide.

5. O momento pós-consulta do/ a médico/a de família. Um festival de “wishfull thinking”, a que se segue a lenta acomodação à ditadura do hábito. Ensaiemos um registo visual. Um gráfico, por exemplo, com alguns valores em alta: perder barriga, mais e melhor exercício, beber muita água, mudança drástica de hábitos alimentares, cortar no sal e no açúcar, etc. Com estas metas na cabeça, como se fosse a banda sonora do paraíso, saio do consultório. Passado um bocado, a música já começa a saturar e muda-se de registo. Nas horas seguintes sobrevem um encolher de ombros imperceptível. No “day after” já me pergunto: «Ontem afinal fui ao médico? O que é que ele disse ao certo?»

6. Sem recados para salvar ou ser salvo. Trapézio sem rede. Só o embalo para desafiar as paredes. Despir a roupa e dançar no chão da tribo. Socorro, só da música que não teima em sair das veias. Tropeçar não para a queda, mas para o mergulho. Tão perto. Os passos afundando-se na neve. O chão da tribo, não de terra, mas de mármore. O fio de Ariane, esquecido na partilha do sol.

 

*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

Leave a Reply