Meio século de democracia

Escrito por António Ferreira

«Ainda me lembro de ver, em Portugal, pessoas descalças na rua, dos dentes podres da maior parte dos meus colegas na escola, do luxo que era ter televisão ou frigorífico, de não haver água canalizada, ou eletricidade, ou esgotos, em aldeias a meia dúzia de quilómetros da Guarda»

Vamos comemorar em 2024 meio século de democracia em Portugal. Já em 2023 teremos mais tempo de democracia do que da ditadura que a antecedeu. Até aqui, pensaria eu, nada de muito polémico: parece adquirido que estamos em democracia e que até 1974 e desde 1928 vivemos em ditadura. Acontece que dois recentes acontecimentos e uma corrente de pensamento que tem vindo a emergir lançam dúvidas sobre tudo isto. Antes de mais, entendamo-nos: a discórdia e a discussão, por mais acesas que sejam, são saudáveis e há coisas que podem ser ditas e outras que o devem ser – sobretudo agora que a discussão livre é um dado adquirido.
O primeiro acontecimento foi a nomeação de Pedro Adão e Silva para presidir às comemorações do cinquentenário do 25 de Abril. A discórdia principal parece ser, para além da retribuição elevada que vai corresponder ao cargo, a sua proximidade das posições do PS (embora, que eu saiba, não seja militante de nenhum partido). A lógica da sua contratação seria, segundo quem o nomeou, os seus 50 anos de idade. Ele, como toda a geração que agora começa a mandar no aparelho de Estado, nas empresas, nas instituições, viveram sempre em democracia. É um critério aceitável, embora fosse aceitável também nomear um capitão de Abril, apesar da já avançada idade, ou qualquer personalidade mais ou menos consensual. Seja como for, podemos dar de barato que qualquer que fosse a escolha seria sempre fácil encontrar objeções, preferências partidárias ou ideológicas do lado contrário a quem critica. Quanto à retribuição, não vejo qualquer problema em que seja equivalente à importância do cargo.
O segundo acontecimento reuniu no MEL (o chamado congresso das direitas) um conjunto de personalidades que, pelo menos em parte, acha que o 25 de Abril não tem tanto a comemorar com isso. Alguns afirmam que o Portugal de hoje é um Estado falhado (como é, por exemplo, a Somália), outros que o 25 de Abril não era necessário por o Marcelismo ir conduzir mais tarde ou mais cedo a uma transição pacífica para a democracia, outros ainda que o Estado Novo, fora aquela parte desagradável de não haver democracia, tinha feito progressos decisivos na economia, no analfabetismo e noutros indicadores. A tal corrente de pensamento de que falava insiste precisamente nisso e nos valores que se terão perdido com o 25 de Abril ou, como às vezes preferem dizer, “a Abrilada”: as contas certas, o respeito, as reservas de ouro, a (suposta) ausência de corrupção, a eterna gratidão por Salazar nos ter “salvo” da Segunda Guerra Mundial.
Não consigo numa página mostrar as falácias dessa argumentação, mas valendo-me do facto de ter nascido 14 anos antes do 25 de Abril de 1974 e ter vivido, nesses 14 anos, em Portugal e em França, tenho uma ou duas coisas a dizer sobre o assunto. Ainda me lembro de ver, em Portugal, pessoas descalças na rua, dos dentes podres da maior parte dos meus colegas na escola, do luxo que era ter televisão ou frigorífico, de não haver água canalizada, ou eletricidade, ou esgotos, em aldeias a meia dúzia de quilómetros da Guarda (e como era tudo tão diferente em França na mesma altura). Ainda me lembro de haver 20 quilómetros de autoestradas em Portugal e basta ler as estatísticas da altura para saber a verdade sobre o analfabetismo geral (e não apenas das crianças), a mortalidade infantil, a taxa de pobreza, a esperança de vida, a altura média da população. Somos agora um Estado falhado? Tenham juízo e, se não sabem como era, perguntem ou leiam. Há muita gente que ainda se lembra e há muito onde investigar.

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António Ferreira

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