O primeiro filho de Abel e Isabel, Marcos, chegou ao mundo em 1974, no dia em que a mãe completou 19 anos. Isabel havia casado com Abel um ano antes, logrando dois grandes feitos: escapar ao celibato, decretado por sentença comunitária, e arranjar um herdeiro que continuasse a tratar as duas vinhas da família. Naquela aldeia, rapariga que não casasse aos 15 algum defeito haveria de ter e, como bem se compreenderá, ninguém gostava de viver com problemas alheios por perto. Com duas vinhas ao abandono, nos confins da aldeia, ainda se conseguia lidar, agora, com uma solteirona à porta, não. Por sua vez, Manuel, ao livrá-los disso e, não fosse dar alguma tentação libidinosa à rapariga, da trabalheira de lhe guardar a porta todas as noites, acabaria por ganhar o reconhecimento da maioria dos conterrâneos. Por não ter ainda nascido, Marcos desconhecia como tudo acontecera, mas cedo percebeu o carinho que os aldeãos tinham pelo pai. Depois de crescidote, começou a interessar-se mais seriamente pelo assunto. Só que, como tão depressa achava que seria pelo temperamento amistoso do pai, como a seguir pensava que seria pelo feitio cordial dos restantes aldeãos, nunca conseguiu chegar a lado nenhum e acabou por desistir do assunto. Felizmente. Porque não se consegue imaginar o que é que o rapaz não haveria de pensar de uma aldeia que, antes de ele nascer, casava as raparigas aos 15 e ainda encarava as solteiras como um grave problema. Assim, vivia orgulhoso dos seus e em paz com os dos outros.
De tanto crescer, aconteceu que um dia a aldeia acabou por se fazer vila. As vinhas foram substituídas pelo “parque industrial” que, aos poucos, se foi convencendo de que os jovens passavam demasiado tempo na escola, porque, quanto mais a vila crescia, mais dificuldade em arranjar trabalhadores havia. Assim, não podia ser. Talvez se convencessem as pessoas de que a vida dantes é que era boa, elas deixassem de querer que os filhos andassem na escola até aos 18 anos e lhos cedessem para trabalhar logo aos 12 ou 13 anos. Como antigamente. Claro que a alternativa seria trazer trabalhadores de outros países, mas as pessoas dali não gostavam que as trouxessem. Ficavam todas muito mal dispostas. Até ao pai, bem-disposto e muito estimado, de Marcos, aconteceu. Da noite para o dia, começou a ficar quezilento e a embirrar com tudo e com todos. Ora, como uma coisa leva à outra, os outros começaram também todos a embirrar com ele e nada voltou a ser como dantes. Desanimados, Marcos, pai e restantes conterrâneos, quiseram recuperar os costumes de antigamente. Incluindo os que não tinham experimentado e os que desconheciam. Quem diz recuperar, diz reerguer, restaurar e outras, igualmente iniciadas por “r”. Claro que depressa concluíram que, como tudo na vida, até para se retroceder nos direitos, liberdades e garantias, existe quem se disponibilize a representar-nos. Vai daí, começaram todos a votar em qualquer um que grite os “r’s” mais alto. Ainda que, como Marcos, não saibam lá muito bem o quê e para quê. Se soubessem talvez não quisessem assim tanto os tais “r’s” de recuperar, reerguer e restaurar que dão em soar bem a tanta desta gente.