Empurrada pelo Papa Francisco, a Igreja deu passos inéditos e deu mostras, finalmente, de perceber que o tema de abusos sexuais não podia continuar escondido entre os armários dos mosteiros ou os claustros presbiterianos. Nesse contexto, o Papa promoveu o debate ao mais alto nível, no Vaticano, e contribuiu para discutir e contrariar uma chaga que não pode continuar a ser tida de clerical quando é criminal, não pode continuar a ser tratada no “seio” da Igreja, como muitos querem, quando diz respeito à sociedade e ao Estado de Direito.
Por todo o mundo, a denúncia de casos de abusos envolvendo clérigos abanou a Igreja Católica, mas entre nós, estranhamente, o assunto continua encerrado no silêncio dos templos. O porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa explicou que a instituição procura a transparência e a verdade, mas desvalorizou a realidade e não explicou os procedimentos concretos que foram adotados nos casos identificados em Portugal. Mais, para o padre Manuel Barbosa, não haverá mais de «dez ou onze casos» e meia-dúzia de denúncias que «não foram provadas». Ora, ainda que fosse apenas um caso, a Igreja não devia apenas orar pela vítima e pedir perdão, tinha obrigação de denunciar e excluir, de tratar como criminoso o abusador. Não foi o que fez. Não é o que faz! Encobre, defende, esconde… Escolhe o caminho do deixar andar, porque «o tempo tudo cura». Não cura, as vítimas não esquecem e aqueles que temos responsabilidades na sociedade também não esquecemos, recordamos e repetimos a denúncia de que os abusadores têm de ser julgados e condenados pela Justiça – O Estado espiritual não se pode sobrepor ao Estado legal; o sentido de poder da Igreja e o seu «clericalismo» não estão nem podem estar acima da Lei. E os crentes, na sua devoção, não podem continuar calados perante manifestações de abuso – denunciadas ou silenciadas.
Recorde-se que, em dezembro de 2013, o Tribunal do Fundão deu como provados todos os 19 crimes de abuso sexual de menores, abuso sexual e coação sexual de que o antigo vice-reitor do Seminário local era acusado. O padre Luís Mendes foi o primeiro sacerdote católico a quem foram imputados crimes desta natureza em Portugal. Então, o Bispo D. Manuel Felício (na sua mensagem de Natal) referiu que a Diocese já tinha iniciado «o processo preliminar canónico» para apurar suspeitas. E a Dioceses da Guarda reagiu em comunicado, declarando que «só se pronunciará sobre este assunto no final da sentença, uma vez que o processo não está concluído». A Diocese deu, pois, guarida a um condenado por abuso sexuais de menores, defendeu-o e apoiou-o – o antigo vice-reitor do Seminário do Fundão esteve detido em prisão domiciliária com pulseira eletrónica de 7 de junho de 2012 a 7 de junho de 2015, albergado na residência da Ação Católica, no centro histórico da Guarda, e até teve o desplante de tocar órgão na Sé Catedral durante a liturgia dominical. O padre recorreu ao Supremo, que manteve a sentença e a pena de prisão, pelo que se encontra atualmente no Estabelecimento Prisional da Guarda. E que disse o senhor Bispo? Nada! Que fez a Igreja? Protegeu-o e defendeu-o! Na minha terra, “tão ladrão é o que vai à vinha como o que fica à portinha!”. O Bispo da Guarda pode ficar a orar pelas vítimas, mas estas nunca esquecerão o crime de que foram vítimas. E quando o Papa eleva o debate sobre abusos sexuais no seu seio, é também sobre a responsabilidade da Igreja, sobre a responsabilidade dos bispos, sobre os procedimentos e atitudes nas dioceses. Na Guarda temos o exemplo de tudo aquilo que no Vaticano se discutiu nas últimas semanas e cujo padrão o Papa quer erradicar da Igreja: a desresponsabilização, o encobrimento, a falta de vergonha de um Bispo que escolheu defender e dar cobertura a um abusador de menores. Enquanto a revolta é o que nos resta, releio que «o peso da dor nada tem que ver com a qualidade da dor. A dor é o que se sente. Nada mais. Desisto definitivamente de me iludir com a minha força de adulto sobre o peso de uma amargura infantil. Exatamente porque toda a vida que tive sempre se me representa investida da importância que em cada momento teve. Como se eu jamais tivesse envelhecido. Exatamente porque só é fútil e ingénua a infância dos outros – quando se não é já criança», in “Manhã Submersa”, esse romance triste e cruel que o “nosso” Vergílio Ferreira nos legou.