1. É comum dizer-se que existe uma desigualdade na avaliação feita pela vox populi a crimes praticados por figuras públicas, consoante a sua notoriedade e dimensão. O que quer isto dizer? As inúmeras “trapalhadas” de colarinho branco, corrupção em grande escala por políticos e gente poderosa em geral, suscitam, é claro, a indignação generalizada, fúria justicialista, ímpetos regeneradores do “sistema”… Ainda assim, sobra sempre uma réstia de temor reverencial perante os poderosos. Uma resignação envergonhada com um tipo de criminalidade misteriosa, a que só eles têm acesso. Uma margem de tolerância desconhecida nos países do norte da Europa e mundo anglo-saxónico. Vejam-se os casos de Salgado, Sócrates, Vara, Lima, Luís Newton, Rendeiro, etc. Mas quando se trata de pilha galinhas como o deputado Arruda, a fúria popular é implacável. Afinal, o tribuno, não sendo um homem comum, fez o que qualquer um poderia ou desejaria fazer, mas, por decência, não faz. Uma verdadeira afronta. Daí o desprezo implacável, o aviltamento desbragado, o escárnio cruel. Basta passar em revista as redes sociais. Contabilizar o número de memes e trocadilhos de linguagem em que o deputado “não inscrito” aparece. Subsiste a questão de fundo: a baixíssima exigência no recrutamento dos políticos, nas instâncias partidárias, que este caso caricato coloca na ordem do dia. O abandono, pelos partidos políticos, de um papel fundamental para suportar o que os estudiosos chamam de “custos da transacção política”. Refiro-me à sua função de filtro. De selecção e seriação do pessoal político que recrutam.
2. Sem a surpresa do distraído e com a persistência do estudioso, observo a forma como as hostes ditas de esquerda aderiram às convenções burguesas em relação à família, à moralidade em geral, à vidinha, ao dinheiro, etc. Fazendo Engels dar muitas voltas no túmulo. Este fascínio aparece convenientemente maquilhado com aquilo a que Rob Henderson (“Troubled – A Memoir of Foster Care, Family, and Social Class”, 2023) chama «convicções de luxo» (“luxury beliefs”). O conceito aparece desenvolvido pela investigadora Patrícia Fernandes, em vários artigos no “Observador”. As convicções de luxo, com o advento do “wokismo”, ocupam o lugar antes reservado aos bens de luxo, como elemento distintivo fundamental da pertença a determinada classe social. Neste ponto, recomendo uma visita ao Museu do Tesouro Real, na ala nova do Palácio da Ajuda, onde estive recentemente, para se perceber o alcance da observação. Não está em causa a desmaterialização da riqueza, mas o recurso a um aparato conceptual (privilégio branco, apropriação cultural, heteronormatividade, etc) capaz de estabelecer a pertença a determinada elite. Mas Henderson, ele próprio filho de mãe toxicodependente e pai incógnito, e que passou a juventude em lares de acolhimento, vai mais longe na sua definição: as tais convicções «são ideias e opiniões que conferem estatuto às elites que as profere, sem que estas sofram as suas consequências negativas, que recaem quase exclusivamente sobre as classes mais desfavorecidas». Ou seja, as novas elites criaram uma bolha conceptual consistente com a bolha real que os protege do infortúnio, da insegurança, da necessidade. Ao contrário das populações “vulgares” (os «deploráveis« que votam Trump), os quais permanecem à mercê das convulsões económicas, sociais e demográficas. Alguns exemplos que o autor fornece de “luxury beliefs”: retirar fundos à polícia, a religião ser irracional e factor prejudicial, o “fat shaming”, a crença de que a sorte é mais importante do que o mérito, entre outras.
3. Olhamos para o passado com desvelo. Raramente conseguimos decifrá-lo como um enigma. É mais fácil estendemo-nos nas almofadas que as falsas memórias tornaram confortáveis e doces. Ou assinalarmos as áreas a evitar, pelas mesmas razões. Há como que um subtil bloqueio, destinado a impedir as perguntas e baralhar as respostas. Como se uma permanente necessidade de reconciliação e amparo obrigasse à epopeia sem mácula e sem fissuras. Com os destroços varridos para a penumbra as traseiras.
* No calendário vegetal celta significa “Sorveira”
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia