O afastamento entre eleitos e eleitores, diz-se, é uma preocupação das democracias contemporâneas. Em Portugal, essa dissonância é um reflexo da cultura literária. Enquanto o povo vive entre o fatalismo e a comicidade das novelas de Camilo, o presidente é épico como Camões, o primeiro-ministro é ardiloso como Fernão Mendes Pinto, e o parlamento é galhofeiro como Gil Vicente.
Se o povo chora da sua penúria e ri dos seus infortúnios, os nossos líderes vivem no melhor país do mundo. Onde os abusos sexuais na Igreja são tão poucos que o próprio Baco, no Consílio dos Deuses, abandonou os portugueses à sorte da sua própria líbido, percebendo que nunca lhe ultrapassariam a fama. Onde a recessão económica nunca chega, nem que seja necessário pilhar e fugir a salto dos credores, e a fauna local se mantém apanhando bugios. Onde a discussão política é tão circense, que não surpreenderia ninguém se, durante os debates parlamentares, algum deputado respondesse, inevitavelmente sobre um tema de extrema importância, “samicas caganeira”, e todos rissem, fingindo indignação.
Neste país, não há Adamastor que não se vença, peripécia de que não se safe, barcarola em que não se entre. Há fome nas casas? Mas vai haver aeroporto. Há analfabetismo nas escolas? Mas vai haver selecção no Mundial. Há pedofilia na Igreja? Mas vai haver Jornada Mundial da Juventude.
Além disso, a entrada do Leste europeu no clube comunitário veio destronar Portugal de várias lideranças a que estávamos habituados. Portugal já não é o país com mais acidentes rodoviários, já não lidera em casos de violência doméstica, já não é o número um em consumo de álcool. É que nem em dívida externa ganhamos a italianos e gregos. Resta-nos o consolo de sermos campeões a jogar à bola em espaços fechados e os maiores da Europa na quantidade de peixinhos que comemos. Não são quatrocentas coisas, mas já não é mau.
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia