Insólito João de Deus

Escrito por Eduardo Lourenço

“Com uma sobriedade irónica, um distanciamento muito paradoxal de tudo, muito por portuguesmente inconsciente ou muito portuguesmente consciente, da sua audácia nos limites do assimilável.”

Portugal, terra de sonhadores tímidos, vimos nascer, em tempos, dois santos fora do comum. Um deles, o mais popular da Cristandade, pôs-se um dia a pregar aos peixes. Teólogo, conhecia a língua dos anjos, franciscano, conhecia ainda melhor a linguagem da natureza. Para nosso desconsolo, chamam António de Pádua a esse santo que tinha o dom da ubiquidade e nascera em Lisboa. Asceta, é evocado em Portugal como patrono de casamentos e amores lestos.
O outro nasceu no Alentejo, deixou cedo a sua província e acabou por ir parar a Sevilha, naquele tempo uma espécie de Londres do sul. Não era teólogo nem sábio. Falava pouco ou nada. A sua fala era toda em actos, como a de Diógenes. Pobretana de Deus, recolhia nos bairros duvidosos de Sevilha os caídos da vida e da fortuna e levava-os às costas para um vago pardieiro onde cuidava deles. Foi tido, durante muito tempo, por tonto. Ou mesmo louco. Talvez o fosse. É conhecido sob o nome de João de Deus. Almas pias, impressionadas pelo espectáculo de uma caridade tão extravagante, tentaram devolvê-lo a práticas mais sensatas. Com a ajuda do Rei, conseguiram que ele trocasse os seus farrapos de mendigo por um hábito digno de um servo de Deus. Nós não sabemos se, mais bem vestido, João de Deus se tornou mais saudável ou ainda mais bizarro. Sabemos apenas que as gentes se puseram à escuta do seu silêncio, do seu amor louco pelo próximo.
Não creio que João César Monteiro, quando decidiu encenar a sua vida e insólita visão, nas “Recordações da Casa Amarela”, tenha escolhido por acaso o nome de João de Deus. O nosso mundo, tão vertiginosamente racional e controlável, desconhece a antiga familiaridade com a loucura, com o sonho que desamarra a ordem adormecida da sabedoria. Para acordar é preciso tomá-lo do avesso, revestir-se do manto esburacado do bobo por conta de ninguém, com determinação, humor e jubilo. João César Monteiro pertence a essa raça, tão avessa ao paradigma lírico racional, das criaturas que perturbam.
A literatura e o cinema portugueses buscam, há muito, o segredo de uma visão pitoresca do mundo tão caro e tão acessível à nossa vizinha Espanha. Com fracos resultados, João César Monteiro instala-nos nela com uma tal evidência que nem temos tempo para nos dar conta a que ponto a sua travessia burlesca do mundo de Lisboa, da sua alegre miséria, das suas frustrações, dos seus desejos recalcados e inocentes, é uma espécie de milagre.
Ela vê, ele é, sem se esforçar muito, a “diferença”. O seu verdadeiro sítio é o algures, um algures tudo o que há de mais próximo quotidiano. Apenas o avesso de uma realidade invisível à força da banalidade. O próprio mundo da fábula converte-se, para o seu olhar como em “Silvestre”, menos numa fuga que numa travessia do espelho do sonho para encontrar o brilho intacto dos seres ou da natureza, rosto ainda virginal de Maria de Medeiros ou paisagem em excesso idílica do nosso país de lenda.
Com as “Recordações da Casa Amarela” e os filmes que se lhe seguem não deixamos a alegoria, nem mesmo a fábula, mas João César Monteiro procede a uma espécie de inversão da sua natural conivência com o mito. A literatura e o cinema portugueses buscam, há muito, o segredo de uma visão pitoresca do mundo tão caro e tão acessível à nossa vizinha Espanha. Com fracos resultados, João César Monteiro instála-nos nela com uma tal evidência que nem temos tempo para nos dar conta a que ponto a sua travessia burlesca do mundo de Lisboa, da sua alegre miséria, das suas frustrações, dos seus desejos recalcados e inocentes, é uma espécie de milagre. Não é tanto a “loucura” mítica dos nossos santos que encontra aí um emprego provocador e sacrílego, mas a mais próxima de um certo “esperpento” peninsular, na grande tradição de Quevedo, Goya e Buñuel.
Com uma sobriedade irónica, um distanciamento muito paradoxal de tudo, muito por portuguesmente inconsciente ou muito portuguesmente consciente, da sua audácia nos limites do assimilável.
Tudo isso faz de João César Monteiro um personagem único no mundo do nosso cinema contemporâneo a que trouxe pelo seu olhar sem censura, lúcido, desencantado e profático, ao mesmo tempo, a dimensão da estranheza que lhe faltava.
* Crónica publicada na edição de O INTERIOR de 21 de janeiro de 2000 e que republicamos no âmbito do centenário do nascimento de Eduardo Lourenço.

Sobre o autor

Eduardo Lourenço

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