Humor de perdição

Escrito por Fidélia Pissarra

“Para já, ficámos a saber que voluntários, para fazer a ronda pelas piadas, por cá também não faltam. Até há uns tempos atrás, sabia-se que o faziam delimitados por uma espécie de cinta de contenção.”

O humor é muitas vezes entendido como ilimitado mas, ainda assim, estará sempre sujeito a limites. Limites esses que serão tão mais escorregadios, quanto mais sórdido, vil e canalha seja. No entanto, mesmo quando não nos merece grande apreço, por ser miserável, o humor apenas deve ser reprimido na justa medida de todas as outras formas de expressão. Não se devendo, salvo situações de opressão e perversidade, retirar-lhe a palavra. Muito menos ao estalo.
Da mesma maneira que nunca nos deverá passar pela cabeça invadirmos um palco e pregar com uma estalada na cara do mau pianista ou do mau cantor que julgamos estar a agredir-nos os ouvidos, também não nos deverá passar pela cabeça fazê-lo para esbofetear um humorista cuja piada não nos caiu lá muito bem, sob pena de sermos tidos por tresloucados. O mesmo auto censor, que nos impede de desatar ao estalo a cada mau desempenho com que nos deparamos na vida, deveria assim prevalecer, sempre, sobre qualquer vontade que nos dê de esbofetear quem quer que seja. Cabendo a cada um impedir a sobreposição do seu temperamento, disruptivo e instável, ao espectro das más performances e até a evitar a exposição das próprias fragilidades. Desde logo, a do descontrolo.
No caso de Will Smith, por exemplo, serão mesmo essas, reais ou inventadas, a subsistir no tempo, após o triste episódio que protagonizou na cerimónia da entrega dos Óscares, transformando a piada de que não gostou na menor das suas assombrações. Além de, tratando-se de um ator premiado, em caso algum se esperar que um dos seus papéis pudesse vir a ser tão acanhado e tacanho quanto o de zelador da pragmática das anedotas. Acanhamento e tacanhez que aqui e ali acaba, irremediavelmente, nesta assombração do “estava mesmo a pedi-las”, com que gostamos de desculpabilizar o indesculpável, a ressurgir e a vicejar como as ervas daninhas na Primavera.
Apanhados entre atos, efetivamente, homicidas sem que os seus autores, imagina-se, se sintam minimamente miseráveis, mas antes acometidos pelos mesmos ditames morais de quem se julga do “bem” e dos “bons costumes”, os justiceiros domésticos parecem cada vez mais destemidos na defesa de cada uma das suas “damas”: esmurrando e pontapeando quem não lhes cai bem. Pelo menos, depois do episódio, o que não faltaram foram fiscais da piada a assumir-se e a solidarizar-se com o “extremoso” marido, levando-nos a crer que com eles a coisa teria sido pior. Acontece que, não especificando em que é que essa pioria se manifestaria, poder-se-á pensar que seriam tão infelizes como o primeiro, mas, provavelmente, muito mais funestos.
Para já, ficámos a saber que voluntários, para fazer a ronda pelas piadas, por cá também não faltam. Até há uns tempos atrás, sabia-se que o faziam delimitados por uma espécie de cinta de contenção. Cinta que cada vez mais, algumas formas de interveniência pública, sob o manto descarado da moral e da ordem, tudo fazem para destruir. A quem não reconhecer estes voluntários da censura, basta lembrar de que se costumam anunciar ao som de um vergonha-vergonha-vergonha muito, mas muito, manhoso.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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