História sem moral

Escrito por Fidélia Pissarra

“Coisas leves nunca são de fiar, de repente vai-se a ver e, à mínima brisa, já desapareceram num corrupio de deixar qualquer um estonteado. Se aflitos estavam, desaustinados ficaram.”

Para comemorar o ano que agora se inicia vou contar uma história.
Há cerca de uma dezena de anos, a nossa Guarda viu-se no meio de uma disputa de umbigos. Ora, como o que os umbigos desejam só aos próprios diz respeito, foi o mesmo que ter sido preterida, indefinidamente, em prol daqueles. Porque, entretanto, cada vez mais e piores umbigos se juntaram na disceptação de apurar qual seria o mais legítimo gestor dos destinos da cidade. Com as dissidências a serem sopesadas em argumentos crescentemente viscerosos, acabou mesmo por acontecer um desastre de pôr todos a bradar aos céus e assim fizeram. Bradaram, bradaram e em menos de nada veio um ser celestial atendê-los. Pegou em cada um dos umbigos sinalizados, colocou um por um numa balança de alta precisão e informou: “o maior destes umbigos não chega a pesar um grama”. Todos os guardenses viram naquilo, daqueles umbigos não pesarem nada, um mau presságio. Coisas leves nunca são de fiar, de repente vai-se a ver e, à mínima brisa, já desapareceram num corrupio de deixar qualquer um estonteado. Se aflitos estavam, desaustinados ficaram. Não era para menos. Nem como golpe de misericórdia aquilo se aceitava. Quando não andavam ao sabor do vento, os umbigos entretinham-se com uma espécie de compasso binário e não havia quem os dissuadisse de continuarem naquele perpétuo bailarico de aldeia em que mergulharam a urbe. Vai daí, desataram todos a gritar para que o ser celestial voltasse. Aquilo não podia ser verdade. Está bem que os umbigos são apenas buracos, pequeninos, no abdómen de alguém, mas, ainda assim, não poderiam ser tão vazios que nem um grama pesassem.
Mas, do céu, com cara de poucos amigos e em tom rude, o bom daquele anjo apenas os mandou calar: chiu!
De repente, fez-se um silêncio de cortar à faca. Os guardenses, atónitos com a intrepidez da criatura, deixaram escapar entre dentes “raios-parta a nossa vida”. O que valeu é que o anjo já tinha desaparecido, vá lá alguém saber para onde, e não os ouviu praguejar, porque os anjos não costumam consentir blasfémias. Ainda que não sejam com eles, ou com algo lá do domínio celestial deles. Nesse particular, nem serão muito diferentes dos umbigos mais levezinhos que embora, às vezes, também possam ficar catatónicos, quanto mais imprecados se sentirem, pior costumam reagir. Terá sido, mais ou menos, assim que demos por nós a viver de muitos anúncios sobre muitas coisas, umas que nunca mais se concretizam e outras que nunca se chegarão a concretizar. Não pela falta da vontade de todos, apenas pela inépcia de um ou dois, muito mal escolhidos para os cargos que ocupam. Tal como demos por nós a viver de elogios a coisas que logo a seguir são depreciadas e de estudos, tão, mas tão desnecessários, que nunca mais se concluem, sem que nenhum anjo tenha dado por isso. Situação que, de forma alguma, o chefe dos entes celestes costuma tolerar que aconteça. Daí esta nossa esperança de que talvez seja apenas questão de uns quantos meses, até algum outro anjo vir meter a frandulagem toda na ordem. Se não vier em 2023, de 2024 não deve passar.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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