A propósito do mais recente e mediático conflito social que trespassa o país, a greve dos enfermeiros, Raquel Varela escrevia a semana passada o seguinte: «O problema não é o fundo de greve, nem de onde vem, é o que a direção da greve faz com o fundo, ou seja, quais os objetivos da greve. Devem-se debater coisas importantes nesta greve: os serviços mínimos são suficientes para proteger o direito à vida? Quais as condições reais de trabalho dos enfermeiros? Como está o SNS? Quais as relações entre os diversos profissionais do SNS? O que faz o Governo com os impostos? O que o Governo ofereceu até agora? E o que os enfermeiros exigem? Todas estas perguntas são boas. Mas lutar contra o fundo de greve é lutar contra a liberdade sindical».
Ora, Raquel Varela colocou o dedo na ferida. A reação do Governo não é uma reação à greve em si. É uma reação à eficácia da greve. Isto não admira quando sabemos que o Ministério da Saúde há muito que se tornou numa secretaria do Ministério das Finanças, encontrando-se atualmente em roda livre, sem rumo estratégico, comandado por objetivos orientados para um apoio quase incondicional ao sector privado.
O jornalismo bajulador do Governo agarrou-se à questão de um “crowdfunding” dito secreto, procurando confundir a opinião pública e convencê-la de que esse é o problema. Não é! O problema não é o fundo, ou seja, não é a forma algo inédita de financiamento da greve. O problema real, a causa de tudo isto, e disso aparentemente não se fala, foi e é a brutal carga fiscal que assenta sobre os ombros dos trabalhadores.
Recorde-se que os trabalhadores foram forçados a submeter-se a uma política exigida pela troika e aplicada com excesso de zelo e muita satisfação por Passos Coelho e Paulo Portas. Essa política congelou investimentos, impediu progressões, impôs salários de miséria, apenas para permitir que se salvassem bancos, que gatunos apoiados num poder submisso e corrupto assaltaram a seu bel-prazer, criando um dos maiores escândalos da nossa História de mais de 800 anos.
O pecado deste Governo consiste em não ter mudado um milímetro a esta política que já vinha de trás. De facto, aparte algumas migalhas lançadas ao chão, os trabalhadores portugueses não demoraram muito tempo a perceber que até as esquerdas mais para lá do PS os haviam enganado. Assim, perante o discurso do “estamos muito melhor”, abriram-se as portas do inferno e meio mundo passou a reivindicar tudo aquilo que lhes foi anteriormente roubado. As greves sucedem-se, principalmente, em nome da recuperação do tempo de serviço que lhes foi sonegado. O que têm em comum a greve dos professores, dos técnicos de diagnóstico e dos enfermeiros? A recuperação de todos os direitos, os tais direitos que uns tiraram e outros depois não quiseram repor.
Só isto explica que um Governo que fez o possível e o impossível para não se preocupar com os milhares de milhões roubados pelos banqueiros deste país se preocupe agora imenso com a origem de umas centenas de milhar de euros para financiar uma greve.
Bem diferente seria se tivéssemos um Governo que afirmasse com toda a clareza que muitos dos seus membros ou apoiantes têm enormes responsabilidades na crise económica e financeira que nos conduziu à bancarrota e nos empobreceu, e que toda essa gente da sua cor política deveria ser julgada e responsabilizada por tudo o que aconteceu.
Como isso nunca vai acontecer, cada classe profissional desenvolve e radicaliza a sua luta na proporção direta das injustiças que reclama corrigidas e da previsão de insucesso dirigida a tais causas. Os mais poderosos reivindicam à maneira clássica, os mais desesperados inventam novas formas de colocar pedras na engrenagem.
Um Governo que não percebe isto, nunca perceberá nada. Hoje ou amanhã.