A cortina de fumo é imensa. Vivemos em overdose informativa, mendicidade de conhecimento e racionamento severo de sabedoria. As “gordas” do mural de qualquer rede social servem apenas para validar o nosso preconceito em relação a qualquer tema, e, sem mais questões, emitir juízos.
A greve cirúrgica é prova disso mesmo. Para a generalidade dos portugueses, os enfermeiros são mercenários que colocam a vida dos doentes em causa e têm uma bastonária que será a sua versão de Bruno de Carvalho, ainda que não se lhe conheça qualquer intenção de escrever um livro, ou de, alegadamente, dar com um cinto a qualquer enfermeiro desalinhado.
O sumo informativo existe, mas depois de inquinado com “opinion makers” e conferências de imprensa, basta passar os olhos por uma caixa de comentários com notícias acerca deste tema para verificar que poucos o alcançam ou sequer almejam. Torna-se então imperioso responder a um conjunto de perguntas frequentes.
– Sabendo à partida da impopularidade desta greve, afastada das centrais sindicais, sem a bênção de partidos, sem o beneplácito da comunicação social e sem o apoio da opinião pública, porque se avançou para a greve?
– Porque 20 anos de greves e promessas, maís inócuas que a hemopatia, que adensaram injustiças e iniquidades dentro e fora da profissão, criaram a tempestade perfeita. Quando em 1999 foi criada a Licenciatura em Enfermagem, ainda antes do pântano, podia o Governo ter optado pela entrega de uma profissão ao domínio da vocação eclesiástica. Extinguia as escolas superiores de enfermagem, que formam quadros superiores de borla para outros países, colocava os seus professores nos hospitais e pagava em futuros de criptomoeda celestial a monges e freiras.
– O que é hoje a Carreira de enfermagem?
– É parecida com o plano ferroviário nacional, dizem que existe, mas ainda ninguém o viu. Em 2009, no Governo do eng. José Sócrates, contra os interesses da classe, foi introduzida uma carreira onde nunca ninguém entrou (CIT) ou progrediu (CTFP). Com o anunciado descongelamento das carreiras houve esperança. Os CIT’s, que são já 50% dos enfermeiros do SNS, iriam deixar de ser discriminados e os colegas CTFP progredir. Errado, pois apesar das vacas voarem, as seringas não.
– Mas a passagem para as 35 horas e a reposição de suplementos não foi cumprida?
– Foi cumprida, como foi para todos os outros funcionários públicos. A promessa da passagem às 35 horas, com algumas exceções, foi cumprida, ainda que não tenham sido repostos os horários com a contratação dos 1.900 enfermeiros necessários. Pelo que, em muitos casos, a já crónica escassez de recursos humanos aumentou, bem como o trabalho extraordinário ou, melhor ainda, os bancos de horas não remunerados.
– O Governo cedeu na introdução dos especialistas, correto?
– Sim. As especialidades pagas integralmente pelos próprios, sempre para além dos horários de trabalho, serão reconhecidas sem qualquer valorização salarial. Marques Mendes diz que não percebe a má vontade em não desmobilizar após esta cedência. Também não sei se os enfermeiros se contentam com uma medalha, um crachá ou uma taça. Mas tenho como certo que o Governo não dispensa cêntimos para Párias e Sudras e que na cabeça de muitos as categorias da nova carreira serão: Criado, Mordomo e Governanta.
– Um aumento da base em 400 euros não é um exagero?
– Em 2013 uma classe profissional negociou um aumento de 900 euros, na FP, sem que MST tenha emitido o seu parecer acerca do seu trabalho braçal. Ainda sem enfermeiros licenciados no mercado de trabalho, a remuneração base de um enfermeiro era de três salários mínimos. Hoje não chega a dois. São os mais mal pagos por paridade de poder de compra no espaço da OCDE e estão na cauda dos pagamentos (Remuneração + suplementos) na função pública, segundo os dados da DGAEP. O trabalho noturno bem remunerado é afinal de outra índole.
– Mas o país tem um défice para cumprir. Pode ceder a estas lutas corporativas?
– Sim. Os enfermeiros são responsáveis pelos buracos da CGD e do Novo Banco. São eles que nomeiam amigos, famílias, militantes, jotas, para cargos de assessores, gabinetes ministeriais, câmaras municipais… onde o grau de diferenciação nunca é colocado em causa para que lhe seja atribuída uma remuneração bem acima da média.
– Onde arranjaram os enfermeiros o dinheiro para financiar a greve?
– Se o Daniel Oliveira tivesse feito contas de primária notaria que para os 400 mil euros bastavam menos de 10 euros a cada enfermeiro e que os privados estão mais centrados na ADSE. Fiquei muito contente pelo célere trabalho de investigação da ASAE. Ainda tive medo que uma nota de escudo fora de validade ou com gordura fosse objeto de qualquer contraordenação grave.
– Uma greve que coloca vidas de pessoas em causa é legitima?
– Como todos sabemos, todos os prazos de espera eram, antes da greve cirúrgica, respeitados… Não, não eram, e ironicamente há hospitais a operar mais agora e a extinguir listas de espera especificas em doente oncológicos. Um SNS que funciona melhor sob protesto. Esta greve ainda fará a primeira página do “Isto é Bizarro”.
– A requisição civil justifica-se?
– Seria uma ótima medida para adotar no Parlamento e terminando definitivamente com os registos biométricos validados com logins de terceiros.
-E o trabalho de Marta Temido?
– O clássico elefante na loja de loiça… aumentando a pressão numa panela em ebulição há anos! Pedro Passos Coelho parecia, apesar de tudo, ter razão ao aconselhar os enfermeiros a emigrar. Não há um que esteja desmotivado no país que o acolheu e muito menos a pensar entrar nas listas do programa “Regressar”
– Alguma palavra para o Sr. PM?
– Sr. PM, será pela cor da nossa farda, que o seu Governo nos adjetiva de selvagens, criminosos e ilegais?