Governar é estar para além do óbvio

“Ana Mendes Godinho tutela a mais complexa e difícil pasta do estado de pandemia em que vivemos, perdeu a credibilidade que conquistou com brio e trabalho, fica na dependência da confiança política do primeiro-ministro”

A vida não estava fácil para a ministra Ana Mendes Godinho. O novo coronavírus chegou em março para transformar a nossa vida num inferno. Entretanto, a pandemia matou quase 1.800 portugueses e infetou mais de 50.000. O mundo tal como o conhecíamos desapareceu, e até houve dias em que parou. No Alentejo destapou-se o pior da economia social com a morte a entrar pelas portas mal tratadas de um lar que era uma referência, mas onde não havia condições, nem cuidados, nem assistência: a morte era toda igual e teve a etiqueta de Covid-19. O Presidente da Câmara de Reguengos de Monsaraz, que é também o presidente do CA da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, asseverou que tinham todas as condições e responderam com dedicação e denodo extremo; a Diretora de Saúde Graça Freitas foi à província para dar umas palmadinhas nas costas da direção do lar (a Diretora Geral de Saúde atuou como se fosse membro do governo) – num momento de modorra e indolência em que o essencial é aliviar a dor e assegurar «que tudo foi feito»… e a morte tombava solteira. Mas um mero relatório da Ordem dos Médicos explodiu o politicamente correto e o discurso do «está tudo bem!», porque afinal a morte não tinha toda a etiqueta Covid-19 e o lixo e o cheiro a urina eram mais fortes do que os cuidados sanitários.
Em Reguengos, entre o silencio e o mármore, depois da morte, ficou um relatório, o que a ministra não leu. Um relatório que parece uma auditoria. Mas que prerrogativa tem a Ordem dos Médicos para fazer auditorias a um lar?
Ana Mendes Godinho, eleita deputada pelo distrito da Guarda e ministra com a pasta que tem de colar-nos ao “novo normal”, não vai sobreviver à pandemia. Não porque não tenha capacidade, abnegação, energia ou dedicação à causa pública, mas porque não percebeu que em política há erros que não se podem cometer. E uma das mais efetivas ferramentas que um governante tem para aquilatar a gravidade de uma situação é ler os relatórios, e ainda mais um que registava a situação gravíssima que se vivia no lar de Reguengos.
Quem governa tem de ter perspicácia e perceber antecipadamente o que vai acontecer a seguir. Não basta a competência, é preciso sensibilidade, sagacidade e subtileza, é preciso dominar os assuntos, todos. Não é responsabilidade da ministra «apurar a responsabilidade de surtos nos lares», mas tem de conhecer os relatórios de todas as incidências que tutela quando o Estado falha tão gravemente. E não pode evidenciar falta de sentido de missão e desinteresse.
Ana Mendes Godinho tutela a mais complexa e difícil pasta do estado de pandemia em que vivemos, perdeu a credibilidade que conquistou com brio e trabalho, fica na dependência da confiança política do primeiro-ministro.

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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