Germinal

“Nos tempos em que éramos livres, costumava deambular por Lisboa, lendo o “Livro do Desassossego” pelas esquinas e recantos dos bairros históricos. “

1. O período que vivemos é propício a que pequenas minorias efervescentes capitalizem a insatisfação que grassa em largos sectores da população. Alguns fazem-no esperando por um movimento redentor. São os inocentes políticos. Há-os de dois tipos: os “Billy Budds”, inspirados num personagem de um conto de Melville, e os “príncipes Mishkins”, baseados no carismático protagonista de “O Idiota”, de Dostoievski. Os primeiros são incapazes de reconhecer o mal e a sua complexidade. Sobretudo nos regimes totalitários. Os segundos são um tipo de missionários, que reduzem a acção política a um aumento ou diminuição do sofrimento. Reconhecem o mal, mas sempre a posteriori, só após a embriaguez do compromisso com a redenção ter passado. É curioso observar a atitude que algumas pessoas adoptaram perante o conflito na Ucrânia. Refiro-me àqueles que se recusam, de forma clara, a condenar a invasão e apoiar inequivocamente a causa ucraniana. O que nada tem a ver com uma saudável atitude crítica, a análise criteriosa da informação ou a diluição do conflito num xadrez mais vasto e complexo. Não é disso que se trata. Ora, dentro desses cidadãos, saliento quatro tipos distintos:
A) O PIEDOSO ABSTENCIONISTA. São os que, por razões religiosas, ou tibieza intelectual, têm uma posição fluida, muitas vezes mal informada, mistificadora e catastrofista. Daí uma objecção de consciência escudada na paz. Ou seja, enchem a boca com a paz, mas não olham para a realidade e não percebem bem o que é preciso fazer para lá chegar. Embora pareçam eternos hesitantes, têm uma agenda oculta. Apesar de tudo, são inofensivos e dignos de compaixão.
B) O TROLL EGOLATRA. São aqueles que estão contra qualquer pessoa ou acontecimento que sintam maior do que eles, que não saibam explicar, ou com quem, simplesmente, resolveram implicar. São normalmente falhados ressentidos, em busca de uma originalidade a qualquer custo. A sua inteligência e o seu brilho são constantemente traídos pela irracionalidade. São vozes que se perdem nas esquinas da virtualidade, mas, na vida real, pouco mais significam do que notas de rodapé. São propensos a ter seguidores, que neles facilmente se reconhecem. C) O SOFISTA ESOTÉRICO. São aqueles que espremem a História até que esta ampare os seus argumentos. Tal e qual como fez Putin, no ano passado, no seu libelo “Sobre a Unidade Histórica de Russos e Ucranianos”. Onde distorce habilmente a evolução a partir do Rus de Kiev, em busca dos mitos fundadores da identidade nacional russa. Não hesitando em forçar os factos, ou mesmo inventar – tal como nós com o milagre da Batalha de Ourique, ou as Cortes de Lamego (neste caso, embuste puro e duro) – até chegar aos mitos da etnogénese, ou do lar. De forma a ‘acomodar’ a eminente anexação da Ucrânia. Tal como Putin e a sua nostalgia imperial, ou o seu fervor pan eslavo, ignoram que a História não serve opiniões, mas factos. E que a comédia humana requer proximidade e dispensa cerimónia. Por isso Putin impõe a distância. Para que ninguém se ria dele. E que Zelenski, porque conhece a erosão causada pelo riso, desafia o medo. Mas os sofistas não percebem. Tornam-se pregadores que anunciam vida mas que destroem quem os ouve. Todos sabemos o que está em jogo no conflito ucraniano. Todos já percebemos como as peças do xadrez se estão a deslocar. Até uma criança percebe. Mas os sofistas vivem da usura da memória. Inventam camadas de patine ideológica para sussurrar o engano. Para que percamos de vista o que “lá está”, seduzidos pelo que eles “lá põem”. A Putin, tal como a outros ditadores, não faltam idiotas úteis. O fascínio dos débeis pelo poder absoluto não é de agora. A lista não caberia nestas linhas. Mas os sofistas não são bem as odaliscas do tirano. Nem os seus factotum dissimulados. São simplesmente ególatras com a obsessão da originalidade. D) O MINISTRO DA VERDADE. São aqueles que, tendo sido formatados ideologicamente, parecem querer iludir essa unidimensionalidade, com resultados sinistros. Sem assumirem, às claras, o que são, criam um discurso original, mas onde a camisa de forças ideológica está omnipresente. Menos no conteúdo do que nos métodos. Pois não hesitam em manipular ou apagar factos, fazer comparações absurdas, lançar bombas de fumo, criar muros de silêncio, arregimentar falsos argumentos, deturpar a linguagem, num duplipensar digno da distopia orwelliana, que dignamente representam. São persistentes, inflexíveis e imunes à racionalidade. Convém ouvi-los só para melhor os identificar e depois apagá-los do radar. Pelo caminho, se forem próximos, tentar chamá-los à realidade, embora inútil, aligeira a consciência.
2. Nos tempos em que éramos livres, costumava deambular por Lisboa, lendo o “Livro do Desassossego” pelas esquinas e recantos dos bairros históricos. Uma Lisboa secreta, saída de um roteiro pessoal. Onde persistia o rasto de alguns quadros de Mário Eloy, a atmosfera de Cesário Verde, as caleches de Eça e a luz a escoar-se pelo ocre das paredes das casas, ao fim da tarde, que era só minha. Um privilégio, poder ver o que legiões de turistas apressados nem sequer suspeitavam. Trocar olhares com uma magnificência que, de outra forma, acabaria desperdiçada. Iluminado pela prosa de Pessoa, escondia-me da agitação sem sentido e mostrava-me no verdadeiro palco da existência.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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