1. «Se fossemos um país civilizado, estávamos a discutir o fim das touradas». Comentário numa rede social. Quem envereda por este caminho, tem uma noção de civilização assaz curiosa. Para eles, o termo é uma caução da imposição de modas culturais. Porém, aquisições civilizacionais são o fim da escravatura e do poder absoluto, o triunfo do indivíduo sobre o grupo, a prevalência da compaixão, a igualdade de oportunidades para homens e mulheres, etc. A civilização não é um aparato tecnológico ou ideológico que nos desliga da natureza, como demonstrou superiormente Eça no seu conto homónimo. Afasta-nos da arbitrariedade e do acaso, mas não de uma natureza que nos entende melhor do que nós próprios. A tourada é um bailado entre a razão e a força. Numa arena não há escape possível ao destino. Não há segunda oportunidade. É o eco de um mundo visceral, autêntico. Um heroísmo absurdo e solitário. Deve ser isso que assusta os que a querem banir. Cheios de boa consciência, quando querem proibir algo que desconhecem, em nome do que julgam conhecer. Para o cidadão comum, o tema interessa, ou devia interessar, porque está em causa a liberdade e a defesa da cultura. Porque o paradigma é antropológico e não político. Hoje são as touradas, amanhã a caça, a matança do porco, o que se deve ou não consumir, o que se pode ou não dizer a uma mulher que não seja piropo, como se há-de morrer, o que se pode escrever ou dizer que escape ao policiamento da linguagem, etc. A luta não é entre “bárbaros” e “sensíveis”, mas entre quem preza a liberdade e a autodeterminação e quem acha que deve impor o seu preconceito aos outros. Entre quem não quer escapar às leis da natureza, e quem prefere uma realidade eufemística, povoada por eunucos. Onde nada é chamado pelo nome. Onde vitalidade e luta em campo aberto são silenciadas, da mesma forma que a morte é um tabu. Onde coragem é participar num reality show e não enfaixar a cinta, no camarim, antes da dança solar. Um mundo de satisfeitinhos com boa consciência, que olham para o lado quando veem sangue, ou lixo, ou uma intensidade humana que os repõe no seu lugar.
2. Muitos de nós não estamos preparados para decifrar a realidade tal como nos é apresentada. Poder imaginar que ela possa ser diferente. A educação que nos inculcaram é a da obediência. A instrução formata e serve uma máquina gigantesca. Os meios de comunicação não cumprem essa função essencial, que é saber desmontar o real, comparar no poço do tempo, fornecer pistas de leitura. Não nos resta outra alternativa do que correr em pista própria. Dá trabalho, é certo. Mas as contas fazem-se no final.
3. Nos thrillers, uma cena clássica é aquela em que o protagonista embala a trouxa, preparando-se para zarpar, como diria o saudoso Zeca. E quando está prestes a conseguir o seu intento, aparecem do nada as forças do bloqueio, vulgo uns capangas do piorio, com ar de poucos amigos. Questionando logo o incauto, com ar sarcástico, se “vai viajar”. O resto já se sabe. A coisa acaba mal. Excepto se o putativo viajante for o herói da fita. Caso em que, após um valente arraial de porrada, deixa os maçadores estendidos no chão. Na vida real, as coisas passam-se um pouco assim. No momento em que nos dispomos a “fazer as malas” para mudar alguma coisa importante, mais não estamos do que a dar um sinal de desafio ao nosso entorno e às nossas circunstâncias. Que reagem imediatamente, de forma imprevisível. Assim justificando o nosso movimento. Como que empurrando-nos para a frente, sempre para a frente.
4. Nos filmes porno dos anos 70 e até mesmo 80, para além da abundância pilosa, ainda existe um simulacro de narrativa. Os actores representam, ainda que muito mal, uma história. Por incipiente que seja. Os tempos do cinema ainda se fazem sentir. A montagem prima pela discrição. Por isso, as cenas passam praticamente em tempo real. Com a Internet, a pornografia massificou-se. Desapareceu a representação, em prol do desempenho. Não há história, mas obediência a um código, determinado pela segmentação dos conteúdos. Catalogados para satisfazer todo o tipo de procura.
5. Uma história do imperador Marco Aurélio. Diz-se que o autor das “Meditações” contratou um escravo para uma função específica. A saber, quando era lisonjeado na praça pública, o que acontecia com frequência, o escravo imediatamente lhe segredava ao ouvido, repetidamente: «És apenas um homem».
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia