«Onde o Santo punha o pé
nasciam rosas
e o povo lamentava
que não fizesse o mesmo com batatas»
(Joaquim Namorado)
Fui companheiro de café, partilhámos cumplicidades políticas, foi meu explicador de Matemática, com pouco sucesso, diga-se de passagem, deu-me a conhecer José Mário Branco e Luís Cília quando os que mandavam não queriam que as pessoas os conhecessem, foi um militante de causas na defesa da liberdade e da sociedade solidária, figura de relevo do neorrealismo, portador de palavras que eram de sonho, afeto e luta, simultaneamente. Joaquim Namorado, um homem que só no ocaso da vida teve direito ao lugar de catedrático na vetusta Universidade de Coimbra, que o “Estado Novo” do “velho” usurpou de forma soez, obrigando-o a recorrer durante décadas ao expediente das explicações, intervalando com umas estadias pelos calabouços da PIDE.
Alentejano de gema, resistiu sem vacilar e sem alterar o seu compromisso político que, pela relevância do seu percurso cultural na revista “Vértice”, e em associações de carácter cultural na Figueira da Foz, promoveu o seu município nos anos 80 um concurso literário com o seu nome, atribuindo um prémio pecuniário irrisório perante a dimensão do homenageado e até muitos dos premiados. O especialista em «violinos de Chopin», de seu nome Santana Lopes, quando da sua passagem pela Figueira da Foz na primeira vez como autarca, acabou com o prémio!
Foi meu médico da “garganta”, não de “garganta”, o Dr. Adolfo Rocha, pessoa de imagem austera e muito parco em palavras, mas que construiu uma obra de uma dimensão literária notável, Miguel Torga, pseudónimo surgido numa homenagem a dois vultos das letras espanholas que muito admirava, Miguel Unamuno e Miguel Cervantes, associando torga, uma pequena erva perene do seu Trás-os-Montes natal.
Cumprimentávamo-nos quando nos encontrávamos, de forma distante, e quando uma vez lhe disse que tinha comprado “Os bichos”, e que gostaria de ler outros livros seus, na esperança de ser presenteado com algum, ele, no seu jeito curto e grosso, diz-me: «Tenho muitos e bons, pode comprá-los na Bertrand, estão lá todos».
Miguel Torga era conhecido por cultivar muito pouco a sua aparência e víamo-lo demasiadas vezes descuidado, tendo em consideração o seu estatuto enquanto escritor lido em muitos países e traduzido nalgumas línguas. São curiosas as histórias de que Miguel Torga era forreta, que não dava autógrafos e que editava os seus livros para poder controlar todo o processo de edição.
Um dia, Miguel Torga foi surpreendido pelo chefe da estação Velha ou Coimbra B, subindo para uma carruagem de terceira classe. Julgando que se tratava de um equívoco, aproximou-se do escritor e observou: – V. Exª. vai em terceira classe? Torga, num raro sorriso: – Porquê? Há quarta?
Uma de muitas histórias de um homem que foi perseguido e preso pela PIDE, que assinou manifestos para a libertação de presos políticos e nos seus diários deixa bem clara a sua posição anticolonial, e a sua oposição à guerra nas colónias.
Nunca foi muito pródigo em elogios para com os políticos que emergiram no fim dos anos 70, apesar de ter sido um antissalazarista assumido, sentindo na carne o ostracismo do Estado Novo, e foi-se distanciando cada vez mais das pessoas, até à sua morte ocorrida em Coimbra, em 1995.
Somerseth Maugham gostava de dizer que um dos aborrecimentos da vida é ser mais fácil abandonar os bons hábitos do que os maus. A grande qualidade contemporânea da maioria da classe política que vai polvilhando a máquina do Estado é a falta total e absoluta de sinceridade. Maus hábitos começam a transformar-se cada vez mais em farsantes e o que acaba por ser ainda mais deprimente é que a maioria das pessoas também acaba farsante porque acredita no que dizem e nunca fazem, argumentando e jurando a pés juntos que não acreditam neles. Como dizia outro farsante Oscar Wilde, «um pouco de sinceridade é uma coisa perigosa, e muita sinceridade é absolutamente fatal». É isso!
Contudo, não se deve confundir classe política com a política, ou com a discussão política e as ideologias, por mais pueris ou idealistas que pareçam. Voltaram a ouvir-se insistentemente os velhos clichés de outros tempos, em “que a minha política é o trabalho”, “os políticos são todos uma merda” ou “a política não dá pão a ninguém”, etc. A realidade é que há politiqueiros que se fazem na politiquice, ganham o pão e querem que as pessoas achem que sem eles a terra não gira e o sol nunca aparece! Foi essa retórica, ou parecida, que fez florescer as ditaduras e democracias travestidas de conceitos neoliberais, por isso olho sempre com reserva esse léxico. A desilusão acumula-se quando vou vendo o que acontece em sessões de cariz partidário e ouço a maior parte dos intervenientes, onde faltam ideias e sobra cada vez mais intriga pessoal sobre o desmando de certos mandos.
Jorge de Sena, na sua angústia perpétua, disse: «O nosso mal, entre nós, não é sabermos pouco; é estarmos todos convencidos de que sabemos muito. Não é sermos pouco inteligentes; é andarmos convencidos que o somos muito».