Floreal

1. Chegámos ao ponto de saturação de teorias e bitaites sobre a pandemia do SARS-COV-2! Começam quase todos com “neste tempo de”. Caros amigos e amigas, não compliquemos o que é simples. Isto é só a natureza a dar a sua resposta, à procura de um equilíbrio que nós perturbamos algures. O vírus não veio apenas estragar os planos do hedonismo e da auto-ilusão sem fim onde chafurdamos. Veio também abalar as rotinas, descobrir as carecas, mobilizar o medo, apanhar políticos manhosos com as calças na mão, lembrar a muitos de nós que já faziam parte de um exército de zombies sem o saberem. Daqui para a frente, por muito que isso custe aos futurólogos, analistas políticos, repetidores de notícias e “notícias” e cartomantes, vai tudo voltar à normalidade. Uma normalidade condicionada, vigilante, é certo. Mas depois das primeiras impressões, manda o hábito. Back to normal. É o lema dos prisioneiros, à beira de uma amnistia geral. A malta apanhou um cagaço e escondeu-se. É tudo. Está fora de causa cada um reinventar-se, ser um agente proactivo de uma mudança de paradigma.
2. Trazemos connosco uma montra permanente. O que somos é o que mostramos. Poucos querem saber do resto. Visto e sabido. Passo seguinte. Há uma exigência fundamental para nós: saber reverenciar os nossos semelhantes só porque existem. Não têm que pensar como nós, ou ser como nós. Ou fazer como nós. Ou adorar os mesmos deuses. Ou gostar das mesmas palavras. Pois há-de haver um momento em que puxam para si as brisas dos mares distantes. Convocam uma luz qualquer que suspende tudo em volta. Mas não exageremos. Também é importante habituar-nos a pregar no deserto. Pregar para uma multidão, que só existe para satisfazer a nossa vaidade, é a ilusão mais cruel de todas. Num deserto, só estás tu e o teu eco. Tu e a tua patética ambição de pulga amestrada. Tu e as tuas “inabaláveis” convicções. Mas é lá que estão os que realmente te escutam. Sabe esperar por eles.
3. Há uma enorme falha teológica no cristianismo, que recentemente vi apontada por Jim Jeffries, numa sessão de stand up comedy. É a questão da distribuição dos castigos e das recompensas no Paraíso e no Inferno. Ora, este é o único espaço do edifício teológico cristão que não é controlado por Deus, mas pelo Diabo. Logo, faz sentido que os pecadores que para lá vão sejam acarinhados e recompensados pelos demónios e não sujeitos a penas eternas. Do tipo, “foste um devasso em vida? Então és dos nossos, diverte-te à vontade. Aqui Deus não entra”. Pelo contrário, os que vão para o céu dificilmente terão acesso a uma luxúria permanente. O lema será uma espécie de austeridade beatífica. Duvido que alguém queira isso na vida eterna, depois de tanto sacrifício na terrena.
4. Desde que Noam Chomsky completou 90 anos, circulam abundantes notícias falsas sobre a sua morte. Se o filosofo conservar um módico de humor, lembrará sempre a resposta de Mark Twain perante as notícias que davam conta do seu decesso. Na verdade, não sei o que passará pela cabeça da figura mais emblemática da esquerda académica americana actual, nesta fase da sua existência. Talvez viva assombrado pelos milhares de mortos às mãos dos khmers vermelhos, um regime sanguinário de que foi ardente entusiasta. É certo que Aragon, Breton, Eluard fizeram a genuflexão diante de Estaline, mesmo tendo conhecimento da extensa galeria de atrocidades cometidas no então modelo dos amanhãs que cantam. Sobre Sartre é melhor nem falar. Mas nenhum deles conheceu o preço dessa inclinação. Em contrapartida, Celine pagou com juros o seu apoio explicito à besta Nazi. Mas tem a desculpa de ser um dos maiores escritores do séc. XX. É certo que Chomsky tem lugar garantido na galeria dos pensadores contemporâneos. Mas o seu caso ilustra bem como os entusiasmos juvenis são avaliados, ou esquecidos, consoante a área ideológica de onde partem. Ainda assim, sou apreciador da veia libertária de Chomsky. E da sua defesa intransigente e corajosa de certos valores fundamentais. Basta atentar ao que escreveu em 1980: «Se acreditas na LIBERDADE DE EXPRESSÃO, acreditas nela para as ideias de que não gostas. Goebbels era a favor da liberdade de expressão para as ideias de que gostava. Estaline também. Se és a favor da liberdade de expressão, isso significa que o és para as ideias que detestas».
5. É comum ouvirmos dizer aos outros e a nós próprios que estão/ estamos em paz. Mas qual o significado desse estado? Normalmente, associamo-lo a um tranquilo céu sem nuvens, prados a perder de vista, um mar sem agitação, uma redoma familiar e doméstica sem fissuras, paisagens sem mácula. Não duvido que essas situações sejam o ambiente natural do bem-estar. Mas que facilmente se poderão assimilar ao langor, ao relaxamento, ao conforto, à quietude, à apetites satisfeitos. Mas é de outra coisa que aqui falo. Estar em paz é saber permanecer imperturbável. É adivinhar o momento em que se depõe as armas. É conseguir estar no olho do furacão. E sobretudo procurá-lo…

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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