Fearn*

“Que eu saiba, não foi por causa das aventuras dos Cinco que, em várias gerações, nasceram batalhões de racistas, homófobos e xenófobos. Curiosamente, é isso que pode acontecer se esta fúria censória do politicamente correcto prosseguir na sua demência. “

1.Todos sabemos o que está a acontecer a certas obras literárias e artísticas: supostamente “expurgadas” de conteúdos “indesejáveis”, à luz da novilíngua politicamente correcta. Começando nas revisões “neutras” de trabalhos académicos e, recentemente, os livros dos Cinco, de Enid Blyton e obras de Agatha Christie. A cultura do cancelamento, com o apoio de certas elites e media, atingiu níveis demenciais. Mas a maré está a começar a virar. Desidério Murcho, num artigo no portal “Crítica na Rede”, relativo à última biografia da autora, “Looking for Enid” (2007), de Duncan McLaren, escreveu: «Na literatura de aventuras, aprende-se a ser um ser humano como os seres humanos seriam se não fossem palermas. Aprende-se a alegria da amizade e da descoberta da realidade, aprende-se a ignorar o que faz dos seres humanos seres mesquinhos e desinteressantes, social e psicologicamente. Aprende-se a ter uma atitude contrária à da maior parte das pessoas: aprende-se a ousar resolver os problemas que nos aparecem pela frente, ao invés de criar problemas que resultam de disfunções e ansiedades psicológicas e sociais». Não diria melhor. E logo um misto de adrenalina e nostalgia tomou conta de mim. De resto, já coloquei em destaque a colecção completa dos Cinco, versão original dos anos 70, na minha biblioteca. Ora, o coro de indignações face ao zelo censório fez o pleno e fala por si. Mas ainda há algo a acrescentar. Como declaração de interesses, quero dizer que cresci para o mundo lendo as empolgantes aventuras da Ana, do Júlio, do David, da Zé e do Tim. E não é pouco. Ao que parece, foram alteradas palavras como “queer” e “gay”, além de expressões como “cala a boca” e “não sejas idiota”. Além disso, num caso em específico, foi alterada a palavra “castanho” com definição do tom de pele de um pescador”. Recordo-me que, em alguns dos livros – “Os Cinco e o Circo” – intervinham ciganos que, entre outras coisas, estavam associados a “negócios” duvidosos. Será que a fúria censória também retirou essas partes, alegando “estereótipos xenófobos”. De resto, os motivos invocados pelos virtuosos inquisidores, são a limpeza de linguagem “ofensiva” e “datada”. No primeiro caso, tal pudor, para além de fascizante, é profundamente estúpido. Sobretudo porque vivemos num tempo onde já nada choca. E se alguém ficará “ofendido” é com a violência, a barbárie e a miséria, essas bem reais, a que assistimos diariamente nos telejornais. Quanto à “datação”, é pior ainda. “Corrigir” a marca do tempo numa criação do espírito é como que amputá-la, retirar-lhe a autenticidade. Porque toda a obra literária, ou artística, tem que ser vista e preservada à luz do tempo em que foi produzida. Seja qual for a opinião que dela se possa ter. É criminoso pretender “adaptar” as obras às modas culturais de cada época. Outra coisa é um autor poder comentar uma história, acrescentando-lhe um pormenor ao gosto do seu tempo. Neste ponto, há um caso célebre: o mito do narciso. Segundo os gregos, vivia apaixonado por si próprio, sem qualquer empatia pelos outros. Já se sabe o que aconteceu a seguir. Punido pelos deuses, foi condenado a morrer à fome. Mas o poeta romano Ovídio resolveu acrescentar-lhe um pormenor. Já na barca do rio Letes, descreveu a alma de Narciso debruçada sobre a água, numa contemplação mórbida do seu reflexo. Um pormenor pícaro, adicionado por um romano à sobriedade do mito original grego. Há ainda questões relativas aos direitos de autor que são aqui levantadas. As associações respectivas deviam adoptar uma posição de firmeza relativamente a este revisionismo descarado, que enxameia as editoras, as redacções dos jornais e as universidades. Que eu saiba, não foi por causa das aventuras dos Cinco que, em várias gerações, nasceram batalhões de racistas, homófobos e xenófobos. Curiosamente, é isso que pode acontecer se esta fúria censória do politicamente correcto prosseguir na sua demência. Porque toda a acção provoca uma reacção de sinal contrário. Não falha. “Olha! Que luz estranha é aquela? Trouxeram a lanterna?”

2. A genuflexão de Putin, beijando as mãos de Xi Jinping, durante a visita do líder chinês a Moscovo, tornou-se viral. E merece um comentário. O czar Alexandre II aboliu a servidão em 1860. Mesmo assim, o czar Putin revela aqui a sua ancestralidade mujique. O que, aliás, não é nenhum desprimor. Basta lembrar que o avô de Tchekov comprou a sua liberdade em 1840, desvinculando-se das grilhetas feudais. Quem conhece a obra dos grandes romancistas russos percebe a grandeza e o despojamento de gestos como os da imagem. Condensam a alma russa: a intermitência entre um fervor inocente e uma brutalidade cáustica. Por vezes, daí nasce um niilismo desesperado. Todos estes estados de alma são personificados por cada um dos irmãos Karamazov. Voltemos agora ao Átila dos tempos modernos. O que vemos nesta imagem? Um autocrata em risco curva-se diante de outro que, cinicamente, se anuncia como sua boia de salvação. Um gesto com um cheirinho medieval.

*No calendário vegetal celta, significa amieiro
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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