As atuais regras de convivência assemelham-se tanto ao considerado hipocrisia de antigamente que parece que o descaramento superou a retidão. Desde músicas talhadas à custa de golpes binários, a roupa que às nossas avós só serviria para fazer rodilhas, tudo é elevado a sublime pelos ah! de quem nunca ouviu, nem vestiu coisa melhor. Se, por estas, alturas lembrou a alguém o “quem nunca provou mel, lambuza-se muito bem com melaço”, aviso que é muito improvável que tal tenha alguma culpa nestas modernices da era do elogio fácil. Isto, cá para mim é resultado de apurados estudos sobre como levar o outro a limpar-nos o caminho. Acho que será mais para rememorar o “não é com vinagre que se caçam moscas”. Caso para pensar que se a uns não custa nada, a outros dá muito jeito. Embora não se descortine lá muito bem que jeito dará a alguém dizer-se-lhe que está muito lindo, muito bem, muito jovem e uns quantos muitos mais, mas teremos de convir que, à falta de outra conversa, aquece, inclusivamente, as relações mais inverosímeis. Provavelmente, muita da culpa, desta nova forma de estarmos em sociedade, é da extinção dos boletins meteorológicos televisivos. Aquela quase meia hora de informação sobre o anticiclone dos Açores e a pressão atmosférica alimentava muito boa conversa: parece que amanhã chove, está um lindo dia. Agora, sem especulação meteorológica que resista à informação guardada no telemóvel dentro do bolso de trás das calças, entretemo-nos com o “estás melhor que nunca”, parecendo que o nosso destino se resume a ser melhores do que uma outra coisa. Não fosse o facto de podermos não ser levados a sério, quando estamos a ser sérios, nada disto configuraria qualquer problema para quem quer que fosse. Assim, já se vê, os que estão sempre a elogiar, dão em desconfiar de quem os elogia e, os que nunca elogiam, também. O enaltecimento sério, sem meias nem peias, é que não pode coibir-se só por parecer pouco credível para quem o merece e não aquecer, nem arrefecer, aos outros todos.
Vai-se a ver e, de repente, dá também vontade de enaltecer alguém. Não, não me venham cá com o pessoal de saúde, bombeiros e afins. Preferia começar pelos vizinhos e acabar nos norte-americanos, gente normal a quem nunca ninguém se lembra de sublimar. Os vizinhos, porque se preocupam connosco, os americanos, porque souberam livrar-se de um presidente medíocre. Aliás, para variar, podíamos elogiar alguns autarcas. Os da Guarda, desde logo, que são pessoas a quem talvez devamos um elogio pelo que fazem e, principalmente, pelo que se recusaram a fazer. Imunes a pressões variadas e, imagino, constantes, parece irem gerindo, com bom senso e inusitada coragem política, o que é de todos. E, porque não elogiar também todos os portugueses que ignoram tontinhos, arrivistas e negacionistas (estes últimos foi só para rimar, que o que estão a precisar é de voltar aos bancos da escola, mas vá…)? Neste começo do ano, a que todos pedem a normalidade suspensa, o que vinha mesmo a calhar era que, entre uma coisa e outra, tratássemos de recuperar a sublimação como excecional, porque a norma, sendo muito linda, fica bem é noutras coisas.