Eutanásia Social – Carta aberta ao Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal da Guarda

“A sabedoria dos anos fez-lhes antever que a falta de proteção que tiveram na juventude de subsistência e fez a emigração, não se tinha ido embora. Voltaram a emigrar; a maior das crueldades que a pátria lhes infligiu.”

Soube, ou melhor li, que vai, à ordem de V. Exa., ser destroçada mais uma Escola na Guarda.
É um sinal perfeito para quem queira vir para a Guarda. É mesmo o mais indicado para que pais venham viver para a Guarda. Ou, que enviem até aos avós, netos, para viverem com a qualidade que a Guarda tem. O sinal é muito apropriado. Os pais não vêm porque de longe assistem a uma Eutanásia do Portugal interior.
Se aos avós, por falta de médicos, enfermeiros ou o que seja, já lhes foi incutido o medo que, no perigo de uma falta de meios para cuidar da saúde, não lhes chegue, a tempo, auxílio da medicina, da farmácia, de cuidado em tempo, e já lhes foi excluída, vedada, a realização do seu sonho: vir passar a sua velhice na terra que amam para de novo a cultivarem. Nas terras deste concelho erigiram boas casas, casas com conforto, que vinham ver nas férias, para uma reforma que o trabalho na pátria não lhes deu, mas que o seu trabalho honrado, noutro país, lhes granjeou. Até a agricultura passaria o ter o seu trabalho e investimento no território abandonado, não fora estar a ser eutanasiado.
Mas os avós não ficam. Não ficaram. O medo real, gerado por, na maior parte do território, não terem acesso a uma chamada de emergência, pela falta de ofertas que tratem, em tempo real, da sua saúde, de médicos, de pessoas habilitadas, com máquinas adequadas, instaladas, não ficaram.
A sabedoria dos anos fez-lhes antever que a falta de proteção que tiveram na juventude de subsistência e fez a emigração, não se tinha ido embora. Voltaram a emigrar; a maior das crueldades que a pátria lhes infligiu. Estava de volta. Agora como então, que emigraram, cercava a pátria, cercava o povo, uma vez mais por todos os lados: a eutanásia.
Quando velhos não há meios para manter a saúde. Quando jovens não há Escola para onde se formarem. A vida que quiseram trazer de volta ao concelho foi-lhes talhada. Agora é de novo, retalhada.
Os dinheiros da reforma que expandiria a economia foram-lhes empurrados, de volta, para os países onde trabalharam. A casa que construíram aqui e que permitiu mais PIB e, talvez, contas certas, fica entregue a um vizinho mais corajoso ou já sem forças para enfrentar a amargura da saudade, a tristeza da separação do sonho que sem ajuda construíram e que agora a eutanásia se encarniça a destruir.
Os netos, irremediavelmente, não falarão português. Não verão os soitos dourados, as matas de carvalhos grandes, não andarão por caminhos milenares. Não verão a Sé. Nem os balcões. Nem Mileu. Nem vacas jarmelistas. Nem Serras. Nem rio, nem ribeira, nem ribeiro. Não aprenderão História, a História das Famílias. Terão perdido para sempre a soberania sobre os saberes.
Mas é tão racional a decisão irracional de fechar uma Escola. Mas é também tão óbvio que a finalidade era fechar a Escola. Fechar uma Escola traz biscates, arruamentos, paredes, enfim, o que se sabe da via sagrada da empreitada e da via sacra de degradação do espírito.
Os velhos fogem por medo da sua saúde perigar. Deixam para trás o sonho realizado de uma casa boa, de uma casa que é o seu orgulho e hoje a sua agonia pela geração que já não lhes ouvirá História e que apesar de lhes terem granjeado os meios para que estivesse ao seu alcance: nunca leu um livro. Sim, em cada dez só quatro lemos um livro. E, por isso, fecha-se a Escola.
Para a geração por quem se esforçaram até ao limite, para ser a mais bem qualificada de sempre, embora não se saiba, nem se vislumbre, para quê, a Escola foi, é, para quem decide; a televisão. O mais profundo a que aspiram é um debate na televisão. E na televisão é raro exprimir-se quem fez. No entanto só quem fez… sabe. Os outros ouvimos dizer. Ora, nesses debates do Parlamento, em direto, dos comentadores, é sempre entre gente que ouviu dizer. Não fazemos a mínima ideia, mas ouvimos dizer. Confundem-se, tomam saber por ter ouvido dizer. Até têm uma fórmula para escrever a ignorância. Quando se trata de saber (que só vem do fazer) lestos afirmam, com solenidade grave: Ah!, bem, isso… isso é técnico. Diria a minha avó Joaquina Vasca: Ladrões do meu sossego.
Expulsam-nos das casas que construímos porque não há meios de proteção de saúde. Explicam-nos com catástrofes porque não treinam para a Proteção Civil. Alguém sabe quantas horas aguentam uma frente de fogo com um malho nas mãos os nossos abnegados bombeiros? Quantas horas lhes pagam bem a esses humanos sublimes para treino em condições reais, para cada um aquilatar dos seus limites. Não sabemos. Perante uma ameaça o que fazem: Conduzem-nos com caridade para fora das casas construídas com dinheiro ganho na emigração.
E, agora que podíamos estar com os netos. Fecham a Escola que entretanto construíram com o dinheiro das remessas que enviámos para a Portugal.
Pátria que, novamente, está a sangrar jovens pela fronteira.
Ao fechar a Escola aos netos, depois de nos assegurar falta de segurança de saúde e de Proteção Civil aos avós, está a fazer Eutanásia Social. Está a fazê-la, quiçá sem dar conta, mas ganhe consciência que está a praticá-la contra a vontade do doente. Esse quer viver aqui. Quer ter família aqui. Quer ir à Escola de S. Miguel.

* Professor emérito

Sobre o autor

Fernando Carvalho Rodrigues

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