Espelhos e caras lavadas

Escrito por Fidélia Pissarra

“Porque, de recursos, muito haverá que se conversar. Assim o queiramos e seria saudável que o fizéssemos. Contudo, não sem antes lembrar do exemplo budista que nos mostra que o tudo à nossa volta é apenas um reflexo da nossa própria mente”

Depois de um processo de candidatura e seleção, previamente definido por parte de um júri constituído por peritos independentes, cinco anos antes, anualmente, é atribuído o título de Capital Europeia da Cultura a duas cidades, de dois países europeus. Por razões óbvias, o resultado da primeira fase deste último processo era ansiosamente esperado pelos guardenses. Ou, pelo menos, por alguns. O título aplica-se a uma cidade e a candidatura, baseada num programa cultural com uma forte dimensão europeia, criado especificamente para o título, deve ser feita em nome da cidade. No convite à submissão de candidaturas para a ação da união “capital europeia da cultura” para o ano 2027 em Portugal, do gabinete de estratégia, planeamento e avaliação culturais, são definidos os critérios de atribuição para a avaliação das candidaturas, divididos em seis categorias: Contribuição para a estratégia de longo prazo; Dimensão europeia; Conteúdo cultural e artístico; Capacidade de execução; Alcance e Gestão. Devendo ser considerada, entre muitos outros factores para que não nos sobram carateres, a previsibilidade do impacto cultural, social e económico de longo prazo, incluindo o desenvolvimento urbano, que o título teria na cidade candidata. Calhando o título, como foi o caso da candidatura da Guarda, passar por “Re/Genarações – Uma Metrópole Rural”, logo uma pulga se prendia atrás de qualquer orelha. E nem seria por, em oposição a “de/generações – Uma metrópole urbana”, se considerar desprestigioso ou pouco ambicioso, seria mais, por não se estar a ver muito bem, que raio significaria ou quereria significar. Fosse o que fosse, agora também já não interessa porque, depois de uma promessa, ténue, muito ténue, de euforia, a disforia começou a instalar-se logo ali, aquando do “ensaio da apresentação”, na plateia, muito mal composta, do TMG, onde só não terá atacado o mentor da ideia inicial.
Byung-Chul Han acha que a depressão é uma consequência do narcisismo. Segundo ele, o narcisista cumpridor de metas de hoje em dia foca-se principalmente no êxito, o êxito implica a confirmação de cada um pelos outros e esta lógica de reconhecimento enreda o narcisista cumpridor ainda mais profundamente no seu ego. Ora, por esta perspectiva, o tal mentor, narcisista, ao contrário dos guardenses, não terá razão nenhuma para ficar deprimido. Pois sobre o êxito, pessoal, de todas aquelas em que se meteu durante o tempo que por cá andou, arrastando recursos e agentes com ele, estamos conversados. Mais no que toca aos agentes do que aos recursos, entenda-se. Porque, de recursos, muito haverá que se conversar. Assim o queiramos e seria saudável que o fizéssemos. Contudo, não sem antes lembrar do exemplo budista que nos mostra que o tudo à nossa volta é apenas um reflexo da nossa própria mente: se se olhar para mil espelhos com a cara suja, então ver-se-ão mil reflexos sujos no espelho. Desde sempre, tentamos livrar-nos desses rostos sujos limpando espelhos em vez de lavarmos a cara, mas só depois de a lavar será possível ver milhares de reflexos limpos.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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