Élia: uma alma generosa

Escrito por Vitor Afonso

Escrevo estas linhas enquanto ouço o pianista e compositor francês Erik Satie. Era um dos compositores mais amados da Élia. A música de Satie é melancólica e extremamente sensível. E era assim também a alma da Élia: melancólica e extremamente sensível. Uma melancolia doce e apaziguadora, e uma sensibilidade suave e profunda. Diria até uma personalidade repleta de subtis filigranas de sensibilidade. Uma personalidade que podia ser a expressão de um harmónico e belo acorde musical de piano (que tão bem tocava).
Discreta e reservada, como era seu apanágio, mantinha uma amizade incondicional com os seus amigos mais próximos e amava os pequenos prazeres da vida. Prazeres mundanos mas essenciais, como uma estimulante conversa de convívio de amigos após um bom concerto; a leitura de um apaixonante livro de poesia; a fruição de uma pintura expressiva; a simplicidade melódica de uma caixinha de música ou o arrebatamento de um espetáculo inovador de dança.
A Élia trabalhou muitos anos com crianças, adorava-as e sabia como comunicar com elas, sempre no tom certo para as motivar e estimular a participar entusiasticamente nas atividades artísticas propostas. Foi intérprete, criadora e formadora em dezenas de espetáculos e projetos artísticos e educativos durante mais de 30 anos – desde o Centro Cultural e o Aquilo Teatro (anos 80 e 90), até ao Serviço Educativo do Teatro Municipal da Guarda (de 2007 ao presente), passando pela rica experiência da Mediateca VIII Centenário (2000-2006) e pelo Teatro do Calafrio. Senhora de uma imaginação fértil e de uma criatividade fora das convenções estéticas convencionais, a Élia era sobretudo uma amante das artes, da educação e de múltiplas manifestações culturais, sempre disposta a responder a novos desafios, a novas ideias.
A Élia Fernandes deixou-nos abruptamente e sem pré-aviso. E uma perda súbita assim custa muito mais, dói mais. Mas o seu legado ficará. O seu exemplo de perseverança e tolerância humanas ficará. O TMG ficou mais pobre sem uma técnica dedicada, e que adorava o que fazia, e sem uma pessoa detentora de inequívocas qualidades humanas. Ficarão as boas (e são muitas) memórias de amizade e cumplicidade profissional ao longo de muitos anos. Porque tudo o que fez profissionalmente para esta cidade ser melhor em termos culturais e educacionais, deve-se também ao seu labor de três décadas. Um labor reconhecido na mediação com escolas e com a comunidade, imprescindível para a construção de uma cidadania mais rica, harmoniosa e dinâmica das crianças, jovens e idosos.
Obrigado, Élia Fernandes. Sempre que ouvir uma caixinha de música ou vir uma libélula a voar, lembrar-me-ei de ti.

Guarda, 17 de maio de 2021

Amigo e colega de longa data, programador e coordenador do Teatro Municipal da Guarda

Sobre o autor

Vitor Afonso

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