Eleições fraudulentas

Escrito por António Ferreira

“Os tempos do mandato de Trump tinham alimentado as mais desvairadas teorias da conspiração, Qanon à cabeça, e ele próprio ia atirando gasolina para a fogueira.”

Em novembro de 2021 Donald Trump perdeu as eleições para Joe Biden por mais de sete milhões de votos. Veio de imediato invocar uma fraude eleitoral generalizada, na comunicação social, na internet e nos tribunais. A Fox News e os sites de direita e extrema direita aguentaram-lhe o jogo; os tribunais não, mesmo o Supremo Tribunal, em que, da maioria de direita que o compunha, três dos juízes tinham sido nomeados por ele. Valha-nos a separação de poderes e a imunidade técnica dos magistrados aos delírios populistas. Os tempos do mandato de Trump tinham alimentado as mais desvairadas teorias da conspiração, Qanon à cabeça, e ele próprio ia atirando gasolina para a fogueira. Por isso, a 6 de janeiro de 2020, quando em frente à Casa Branca açulou uma multidão armada, manipulada por falsidades divulgadas por ele e ali reforçadas, em direção ao Capitólio, foi obedecido. Recordemos: perdeu por sete milhões de votos e nunca foi produzida prova nenhuma de fraude eleitoral, de um lado ou do outro, e muito menos com dimensão que justificasse a mudança do vencedor.
Regressemos a 2016. Trump perde também o voto popular, por menos diferença mas mesmo assim com uma margem superior a 3,5 milhões de votos para Hillary Clinton. A sua plataforma eleitoral baseava-se na criação de um inimigo (os imigrantes, que se apropriariam da riqueza criada pelos americanos) e de uma solução para esse problema (a construção de um gigantesco muro na fronteira sul, a pagar pelo México). Mesmo ganhando as eleições, muito graças ao sistema eleitoral americano, irá também alegar fraude, claro, que só não ganhou o voto popular por causa dessa fraude. Vai proclamar depois que a assistência à sua inauguração tinha sido superior à de Obama – o que era uma evidente falsidade e inaugurou a famosa teoria dos “factos alternativos”. Desta vez, quanto às eleições, ele tinha razão: tinha havido fraude eleitoral generalizada, mas do seu lado. Os russos, interessados em colocar um imbecil na Casa Branca, tinham intoxicado o eleitorado com falsidades em relação a Hillary Clinton, escolhendo com precisão científica os locais onde deveriam fazê-lo. Empresas ocidentais ligadas à direita e à extrema direita, ou financiadas por ela, sabedoras da boçalidade e da vulnerabilidade do eleitorado alvo, fizeram o mesmo, espalhando desinformação e mentiras a coberto do que, segundo se defendia nesses campos, por exemplo no Infowars, de Alex Jones, tratar-se apenas de liberdade de expressão.
Veio depois Bolsonaro e com ele uma campanha idêntica, seguindo os mesmos protocolos: mentiras, intoxicação da opinião pública, populismo desenfreado e um aproveitamento generalizado da ignorância e baixos padrões morais dos que o apoiavam. De novo a procura de um inimigo, as soluções fáceis para problemas difíceis, como a liberalização do acesso às armas para combater a criminalidade, a invocação de uma pureza angelical (depois provada falsa) por contraposição à corrupção dos adversários. A plataforma eleitoral de Bolsonaro, confirmada pela sua atuação posterior, incluía a negação das alterações climáticas, permitindo-se assim a continuação, agora em grande escala, do desmatamento da Amazónia, e a cedência às reivindicações dos sectores mais extremistas da extrema-direita brasileira. Quando veio a pandemia, cedeu como Trump às teorias da conspiração e a charlatanismos vários; quando se começou a aperceber do regresso de Lula e da possibilidade de uma derrota, começou a falar em fraude eleitoral; quando perdeu incentivou um golpe e atirou os seus seguidores para a frente dos quartéis, onde continuam a reclamar uma intervenção militar que o reponha no poder. A invasão das sedes dos poderes legislativo, executivo e judicial do passado domingo é o corolário lógico de todo o processo.
Cabe aqui recordar a tolerância de muita direita civilizada e de muitas pessoas de bem em relação a Trump e Bolsonaro. Lembro-me, por exemplo, de Vasco Pulido Valente, que não gostava da criatura, achar que a comunicação social americana não era justa com ele. Para grande parte da direita portuguesa Lula era absolutamente inelegível, mais do que Bolsonaro. Muito do que resta da ideologia conservadora, sobretudo das franjas libertárias, define-se já apenas pelo ódio à cultura “Woke”, ao discurso politicamente correto e às questões marginais que a esquerda insiste em transformar na sua face visível.
Perante isto, fenómenos como a recusa dos resultados eleitorais e a tentativa da perpetuação no poder de líderes populistas vão continuar a aparecer, até deixar de todo de haver eleições. Entretanto, Putin, o mestre e padrinho deles todos, esfrega as mãos de contente.

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António Ferreira

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