Eduardo Lourenço: um bolo de bacalhau para a eternidade

«Como uma estrela, dessas que se acendem na dureza da montanha onde ambos nascemos e há de brilhar na Biblioteca com o seu nome na cidade guardiã do espólio do ensaísta»

Não tenho muitas palavras para dizer o quanto me toca a morte de Eduardo Lourenço. Talvez porque de há muito o ensaísta faça parte da minha geografia de afetos. “Morrer é só não ser visto”, diz um verso de Pessoa. E nunca como hoje me pareceu tão certeiro este verso. Hoje que o Eduardo Lourenço foi apanhado numa “curva da estrada” e nos deixou.

​O ensaísta falará sempre comigo nos muitos ensaios que escreveu, mesmo se aqui ou ali discutindo ideias que ele defendeu. Falará sempre comigo no fulgor da palavra e na lucidez de um pensamento devotado à cultura portuguesa e europeia, um pensamento ímpar que se foi construindo lentamente, com coerência, ao longo do tempo. Um pensamento que não se deixou encadear por modas ou modismos, antes se foi consolidando, perseguindo, a bordo de cada dia. Um pensamento iluminador como um farol. Como uma estrela, dessas que se acendem na dureza da montanha onde ambos nascemos e há de brilhar na Biblioteca com o seu nome na cidade guardiã do espólio do ensaísta.

​Há homens que nascem ensinados, homens que nascem para ensinar e outros que nascem para aprender. Eduardo Lourenço era destes últimos. Pelo modo como se mostrava disponível para aprender, para escutar quem lhe dirigia a palavra, pela curiosidade genuína, sem preconceitos nem sobrancerias. Era um homem de uma humildade desconcertante.

​Ao longo do tempo, cruzei-me algumas vezes com Eduardo Lourenço em júris e congressos vários. Mas de todas as histórias que guardo, há duas que me tocam especialmente, aquelas em que o homem se revela. O dia em que o conheci pessoalmente, em 1996, em Viseu, num encontro sobre Aquilino no qual éramos os dois oradores. Eu estava transida de medo por falar ao lado de alguém como Eduardo Lourenço. Tinha escrito uma tese sobre “A Casa Grande de Romarigães”, além de ter lido a obra de Aquilino com paixão, coisa pouca em comparação com alguém que tinha escrito um livro com o fôlego de “O Canto do Signo”. Chovia torrencialmente em Viseu e no final havia jantar no Hotel Montebelo para o qual estávamos os dois convidados. Lembro-me de um carro com motorista vir buscar Eduardo Lourenço e a mulher para os levar ao hotel. Eu observava os livros de Eduardo dispostos em cima de uma banca. Tinha na mão “O Canto e o Signo” e dispunha-me a pagá-lo quando o ensaísta vem ter comigo para me perguntar se não queria ir com eles no carro. Eu agradeci e Eduardo Lourenço, ao ver-me com o livro na mão, ofereceu-mo. Disse-me que “quem mandava era o meu Aquilino”. Guardo religiosamente o livro.

Fui com ele no carro e dirigimo-nos ao hotel. Ao jantar, fiquei em frente do ensaísta e fomos conversando sobre Mestre Aquilino e as suas pícaras andanças. Havia uns pratinhos com entradas dispostos sobre a mesa com bolinhos de bacalhau (chamam-se assim, na Beira) e croquetes. Eduardo Lourenço estava desejoso de provar um bolinho de bacalhau, mas a vigilância de Annie era apertada. Cerrada, mesmo. Annie pareceu-me uma torre inamovível. Eduardo tinha estado internado havia algum tempo, não podia, não podia… Vi-lhe os olhos de criança desiludida. Atrevi-me a interceder por ele: “Só meio bolo de bacalhau, pelo menos, para provar. Não vai fazer mal, de certeza. Dias não são dias…”. Annie não teve argumento, sorriu, e Eduardo teve direito ao bolo de bacalhau que tanto desejava. No final do jantar, afastou-me pelo braço e disse-me com ar jovial, quase cúmplice: “Fico-lhe muito grato pelo gesto de misericórdia….”

Numa outra ocasião, num colóquio na Gulbenkian em que novamente partilhávamos a mesma mesa, eu estava constipada. Tinha piorado visivelmente durante essa tarde, os olhos choravam do esforço, a voz enrouquecida, esperava apenas o tempo em que poderia libertar-me da mesa. No final da sessão, uma senhora viera ter comigo e não me largava. Eduardo Lourenço teve um gesto que não esqueço. Veio ter comigo para me dizer: “É melhor ir tomar um chá quente. Olhe que lhe faz bem”. Foi a minha vez de lhe ficar grata pelo gesto de misericórdia.

Eduardo Lourenço era um homem delicado, atento, generoso. O seu imenso saber não o impedia de uma humanidade sem distâncias nem distanciamentos, de uma abertura e disponibilidade para acolher o outro comoventes e cada vez mais raras nos dias de hoje. Como se o tempo parasse em cada encontro.

Onde quer que Eduardo esteja a contemplar a eternidade, sei que Annie estará com ele. Resta-me sonhar que nesse lado do tempo haja uma mesa posta e bolos de bacalhau para o receber. E que Annie lhe sorria com infinita e condescendente ternura.

Professora na Universidade do Minho, natural da Guarda

Sobre o autor

Isabel Cristina Mateus

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