É o tempo de ter tempo

Confinado (este deve ser o termo mais usado por estes dias pelo que fica já a proposta para aquele concurso ridículo que pretende eleger a palavra do ano), olho da janela para a Mãe Natureza.
Confinado, tenho agora tempo de ter tempo. E lá, do outro lado dos vidros embaciados, a Mãe Natureza continua a mostrar-me que há vida. E até ela, a Mãe Natureza, parece perceber que tenho tempo e insiste em convidar-me para ver, com olhos que vejam, esse fenómeno da vida que vive lá fora.
Há vida nos ramos retorcidos dos velhos castanheiros erguidos a um céu, hoje plúmbeo, como que a pedir em clamor à Primavera que os cubra do verde viçoso da folhagem.
Há vida nas cerejeiras que mostram o branco da flor que, milagre repetido ano após ano, se há de transformar no vermelho do saboroso fruto. Há vida nos insetos que lhe zumbem em sua volta à procura do pólen que, ele também, será sinónimo de vida.
Há vida nas pequenas flores silvestres que mostram, garbosas, as cores que as distinguem por entre o verde das restantes ervas que a charrua do lavrador há de arrancar para que esse seu sacrifício seja o prenúncio de nova vida.
Há vida no canto do cuco que já terá roubado o ninho a algum melro ou rola. Sim, que ele, nisso de fazer ninho, não é lá grande mestre!… E assim sempre tem mais tempo para, lá dos altos, lançar o seu cu-cu-ru-cu bem-sonante e deliciar ouvidos atentos.
Enquanto isso, uma dúzia bem contada de pardais decide poisar nos fios do telefone e, no seu piar algo desajeitado, também eles decidem recordar-nos que há vida.
As andorinhas, que dizem ser “as avezinhas de Nossa Senhora”, sempre em voos rápidos e incessantes mourejam para prepararem os seus aposentos para a nova geração que está para nascer. De bicos sempre carregados de lama, de pequenos paus ou de alguma “fermenga” de giesta, não param. E pouco a pouco, viagem após viagem, o ninho lá vai crescendo ainda que, sabedoras, tenham reconstruído o do ano anterior ao qual regressam sem se enganarem. Mistérios da vida… agora já bem instaladas, expõem o seu peitilho branco e os seus trinados ressoam por entre todos os outros ruídos. Parecem noivas à espera de par no remanso do lar que já construíram!… Lar que os rapazes, mesmo os peritos em “ir aos ninhos”, aprenderam a respeitar desde tenra idade: não se tiram os ninhos às “avezinhas de Nossa Senhora”. E quanto isso custa em limpeza!…
E são muitas, são bem mais do que as vinte que terá contado Matilde Rosa Araújo:
«Vinte meninas, não mais,
Eu via ali no beiral:
Tinham cabecinha preta
E branquinho o avental.»
É isto, é o tempo de ter tempo. Até para visitar velhos amigos, os livros, perdidos algures, entre a memória e o lufa-lufa de uma vida que não nos deixa olhar com olhos de olhar.
Mas, se nesta situação de confinados (lá vem a palavra mais uma vez…) outra lição não aprendermos, que fiquemos com a certeza que, afinal, há tempo para ter tempo…

Sobre o autor

Norberto Gonçalves

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