Duir

“A maioria de nós cresceu para a vida alimentado por uma série de ideias feitas. Ordenadas e aceites de forma misteriosa.”

1. A forma como os utilizadores das redes sociais se passeiam pelas mesmas não é assim tão diferente da forma como estão na vida. Há quem não queira implicar o que diz naquilo que faz. Há quem não queira precisamente o oposto. Há quem não se queira implicar de todo em coisa alguma. Há quem não queira, ou não possa, dizer ou admitir aquilo que pensa. Há quem se esconda atrás de uma neutralidade impossível, ou de uma rebeldia paródica. Há quem se limite a reproduzir frases feitas, ensaiando uma versão facebookfiana de uma célebre proclamação do Manifesto Comunista: «Clichés de todo o mundo, uni-vos». Há opções para todos os gostos. Até para quem escolhe vir a terreiro com ideias próprias. Tomar posição com delicadeza, dizendo sempre um pouco menos do que aquilo que realmente pensa, mas o suficiente para afastar dúvidas. Tomar posição com energia, indo para lá das conveniências e das oportunidades. Tomar posição mesmo não o fazendo. E sobretudo perceber que essas posições não são trincheiras, mas pontos de apoio requeridos pela agilidade, ou de observação quando a lentidão se impõe. E sobretudo, numa movimentação discreta, mas decisiva, não se levar a si próprio demasiado a sério…
2. Há um tipo específico de pessoas a que chamo as “feras sorridentes”. Cultivam uma espécie de alegria regulamentar, pautada por um sorriso largo e histriónico. Mas esta joie de vivre é enganadora. A sua credibilidade cedo falece. Pois não há correspondência entre o que dizem os olhos e o que nos mostra um rosto contraído num espasmo forçado. De um lado, os olhos, alucinados, não conseguem esconder a angústia e o destempero. Do outro, os músculos faciais compõem uma máscara funerária. Pois não há vida na alegria fraudulenta. O que há é um rigor mortis sorridente e uniformizado. O contrário disto é o divino sorriso de Gioconda. A inteligência e a vitalidade jorrando, contaminando, inspirando. Sem alarde. Sem assustar. Sem obrigar a nada. A verdadeira proporção áurea da felicidade.
3. Ricky Gervais, provavelmente o maior humorista inglês da actualidade, brindou-nos com o seu mais recente “special”, intitulado “SuperNature”. Gervais não é um humorista consensual. E ainda bem. A alguns não agrada o seu solipsismo, o cepticismo associado, as punch line desconcertantes, o recurso a temas tabu e à banalização do absurdo, que Becket não desdenharia. Pois é isso precisamente que me agrada no criador de “The Office”! É certo que, no panorama da stand up comedy, há outros nomes igualmente disruptivos: Jimmy Carr, Jim Jeffries ou Iliza Shlesinger, só para dar alguns exemplos. Mas Ricky é muito mais do que um comediante que vai alinhando as suas punch line. É um actor/humorista/apresentador, que constrói uma narrativa muito pessoal, mas com ressonância universal. Pautada pelo humor corrosivo e que não conhece barreiras. Um humor cheio de recados e subentendidos, com que Gervais puxa o espectador para uma área restrita, onde reina a liberdade.
4. A maioria de nós cresceu para a vida alimentado por uma série de ideias feitas. Ordenadas e aceites de forma misteriosa. E que, graças à mentira que propagam, mais tarde é difícil desmontar. Uma delas é que há várias esquerdas. E, do outro lado, uma direita no essencial unida. Nada tão falso. Há tantas direitas quanto os interesses, a maior ou menor proximidade do poder, o grau de (i) literacia, a maior ou menor ligação à alta finança, o tradicionalismo, o apego ao risco, ou à dúvida permitirem. E pode haver combinações surpreendentes. O libertário pode estar mais perto do aristocrata do que do tradicionalista. O plutocrata gosta de devotos, não de colaboradores livres. O ideólogo sente-se mais confortável com um opositor do que com um céptico tecnocrata. Um oligarca é sempre um oligarca. E o poder é sempre o poder.
5. Só quando cessa a arrumação que persistentemente ergui, como um precioso artefacto, para me esconder do mundo. Só quando ponho de lado a cinética da mente. Só quando olho para as coisas como se fosse a primeira vez e fico preso no seu encantamento como se fosse a última. Só quando estou suspenso dos gestos pequenos e sem importância, para não cair. Só aí respiro fundo, porque a minha vida adquiriu a portabilidade plena.

Nota: doravante, os títulos das crónicas correspondem aos meses do Calendário das Árvores Celta. Tem treze divisões lunares. O calendário moderno das árvores é baseado no conceito de que as letras do antigo alfabeto celta Ogham correspondiam a uma árvore. Existe um menir, gravado com signos dessa linguagem, à entrada da biblioteca do Trinity College, que visitei recentemente.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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