Dos sepulcros caiados

Escrito por João Mendes Rosa

«Os saudosistas do fascismo continuam a recusar ver os recessos horrendos do sepulcro»

Assim os chamam os Evangelhos: «sepulcros caiados» (Mateus 23:27). A sua aparência exterior fá-los supor realmente formosos, mas por dentro estão «cheios de ossos e de toda imundície». Todavia essa aparência enganosa, essa máscara dissimuladora, ludibria por algum tempo, mas acaba por cair naturalmente face à insustentabilidade do engano. Mas fossem os fariseus ou os doutores da lei de ontem ou os governantes de hoje: são no fundo os mesmos «hipócritas» (o apodo é do Filho do Carpinteiro) de sempre a toldar o quotidiano, a lembrar-nos que o fio do tempo corre no sentido de amodernar o figurino que se vai, todavia, requintado pelo transcurso dos séculos. E o esmero atingiu hoje tais patamares de primor que a aparência externa desses sepulcros está cada vez mais alva e, claro está, também mais esquálido e sombrio o seu interior. Vem tudo isto a propósito das recentes reacções de certos sectores às comemorações do 25 de Abril. Afinal o país ainda está dividido (felizmente em partes desiguais!). Os saudosistas do fascismo continuam a recusar ver os recessos horrendos do sepulcro: o paraíso do país neutral, artificiosamente pacífico, de marujos e fadistas era a cal nívea que acobertava um submundo de corrupção e decomposição lenta do sistema, atestado em episódios indecorosos, devida e prontamente silenciados pelas altas cúpulas, ante uma sociedade manipulada, agrilhoada e a rebentar pelas costuras. Refira-se o caso “Ballet Rose” – escândalo sexual envolvendo políticos poderosos do regime ditatorial e prostituição infantil em que crianças de 8 , 9 e 10 anos eram entregues pelas mães para se prostituírem com vários dignitários Estado Novo e seus apaniguados do mundo empresarial e institucional; ou o caso “Burnay” – Salazar afirmava não haver expressão homossexual no nosso país (obsessão doentia de um político decrépito e intolerante mas contumaz, que ostensivamente fechava os olhos à própria história da Humanidade…). Mas o episódio de Cascais, ocorrido a 9 de Março de 1952, pôs a descoberto as predileções íntimas de altas figuras do Estado que se envolveram naquela que seria apenas mais numa orgia de cocaína, absinto e todos os excessos e extravagâncias (ao que parece até missas negras) mas que inesperadamente redundou na morte do jovem estudante de Direito, filho do Visconde do Marco, Carlos Burnay. Salazar tratou de abafar o caso e diligenciou habilidosamente para que o mesmo não passasse para os jornais nos contornos veros. Depois seguira-se o arquivamento do processo por ordem do Chefe de Governo e a libertação de alguns dos envolvidos, que fez suspirar de alívio certas figuras gradas à esfera governamental e que participaram no insólito festim – alguns haviam-se casado à pressa para alijar suspeitas, e bocejantes até aí de tédio na companhia das esposas puderam, assim, regressar aos braços dos amantes…
Desta feita, os saudosistas que verberaram contra a Revolução de Abril perpectuam no tempo o silenciamento da putrefação: por muito que invoquem o paraíso da honestidade e boa gestão pública, o regime salazarista esteve muito longe de ser sofrível até nesse domínio. Foi um sistema absolutamente iníquo que privilegiou uma minoria, distribuiu riqueza por um restrito número de famílias, deixou o país na mais profunda miséria social. Mas o que importava era que a imprensa não divulgasse… factos atentatórios daquele regime caduco e perverso.
Mas tal não é peculiar à práxis fascista; trata-se de um pernicioso vício de poder em Portugal. O insuspeito Alfredo Pimenta – salazarista convicto mas de uma elevação moral inquestionável – pôs o dedo na ferida ao dizer que no nosso país campeavam os «Salazarinhos», que eram «aos milhares e todos convencidos que são Salazar». Pois na verdade, assim parece ser. Há detentores de cargos públicos que se assenhoreiam autoritariamente dos mesmos em proveito de uma imagem (os tais “sepulcros caiados”), uma posição, e nem sequer sabem ao certo que caprichos do destino os fez ascender a essa categoria – em muitos verificável a aportação exacta do “Princípio de Peter”. Então se esse poder concerne aos domínios da Cultura, mais se verifica no governante (nacional ou municipal) o despotismo candente, inflexível, atroz, na certa para encobrir a sua impreparação e – por que não dizê-lo? – uma imensa insegurança advinda da própria incultura que o acompanha e até caracteriza. Criaturas miserandas laborando avidamente (apenas) em proveito próprio, movidos por uma desmedida ambição pessoal e mordendo até a mão que propiciou a sua trampolinagem no poder. Propalam então uma paz inexistente, a brancura da fachada, a leitura cândida da pátina. O íntimo, esse, ficará por sua vontade nas encolhas da história… Daí ludibriarem a verdade e silenciarem os factos mais incómodos. Para isso põem em marcha títeres que manobram a seu bel-prazer, jogam despudoradamente com alianças efémeras entre este e aquele subordinado, aliciam uns e intimidam outros. Algo está mal? O que importa é que os jornais não saibam! Se alguma verdade vem a terreiro sem a permissão do tiranete, dará caça sem tréguas a quem possa ter sido inconfidente (ainda que sendo sabedor da alta improbabilidade da acusação). Possuído de desrazão, desgovernado e vendo os seus créditos malbaratados usa todos os trunfos para singrar. Ele sabe, no fundo e em consciência que prevaricou, mas a sua natureza despótica não o deixa admitir o erro; quer é saber como esse erro se tornou público. Por isso cria opacidades na própria paz falaciosa que cultiva. Os Evangelhos chamam-lhes «sepulcros caiados»…

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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