Dom Queixote

Um sociólogo sem mancha de cujo nome não consigo lembrar-me não há muito tempo vivia como um fidalgo, com a sua lança sempre em riste, piropos antigos, torcendo pelos fracos e com um gabinete ao fundo do corredor.
Este cavalheiro, de tanto ler livros antigos de sociologia e equitação, encheu-se de fantasias e de ganas de combater a injustiça através da teoria crítica e de montar. A sua vida seria, decidiu, dedicada a salvar todas as Dulcineias aprisionadas nas grilhetas do capitalismo.
Para o ajudar no árduo combate contra a desigualdade social, tal fidalgo encontrou numa aldeia um simples camponês, a quem nomeou de ajudante e escudeiro. Embora acreditasse numa sociedade sem classes, o nobre senhor viajava em cavalos de primeira e o escudeiro, em burros de carga.
O aristocrata via no seu criado, que além do mais era pançudo, o reflexo do imperialismo. Uma barriga daquelas só se consegue à custa de muitas imperiais. Julgava, por isso, necessário educar o simplório com lições de Marx e Lenine, que o pobre ouvia sem paciência, pois era claramente um epicurista pós-moderno e não acreditava em teleologias nem em signos do Zodíaco.
Um dia, julgando que estava a lutar contra gigantes e a salvar uma Dulcineia da opressão materialista do trabalho industrial, o generoso homem estava, como o seu fiel aio conseguiu imediatamente compreender, a tocar de várias formas e em vários sítios algumas moças roliças e silvestres oriundas de um campesinato etnicamente diverso.
Existia na literatura das bulas medicinais a lenda do elmo de Membrino, uma espécie de cobertura fina que se aplicaria sobre qualquer um dos membros para evitar contactos com superfícies bacteriologicamente impuras. Vendo um preservativo usado no chão, convenceu-se o nosso protagonista que seria tal elmo, capaz de o proteger de calúnias e outras doenças.
Vendo o seu nome difamado e arrastado pela lama das botas dos jograis que lhe cantavam a má fortuna e o amor ardente, acedeu o herói desta narrativa à torre mais alta do reino, e do cimo da mais elevada das ameias, exclamou:
“A culpa é toda do neoliberalismo. Se as gajas não fossem emancipadas e armadas em indivíduos com autonomia de decisão e consciência do self, se não tivessem a mania de que não há devires históricos que estruturam a nossa condição, não andavam para aí a fazer queixinhas parvas. Nas sociedades tradicionais, agrárias ou de pastoreio, as epistemologias do apalpanço chegam muito mais a sul. E as mulheres até gostam, porque sentem que serem tocadas por mãos com elevadíssimo capital cultural as torna parte das dinâmicas sociais de integração identitária.”

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Nuno Amaral Jerónimo

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