Do interior

Nasci numa cidade do interior e sou por isso particularmente sensível aos resultados das eleições presidenciais de há dois dias. Resultados que mostraram um país dividido de norte a sul a partir da coluna vertebral que a N2 de algum modo representa, separando o litoral e o interior. Já o sabíamos há muito, é certo, mas as eleições mostram-no à luz do dia com a evidência de uma mensagem oculta numa garrafa cuspida pelo mar nas urnas de voto: “Olhem para nós. Estamos fartos. Chega!”
Não me é difícil perceber as razões desse voto. De cada vez que regresso à cidade, sinto-as na pele. E doem-me como se fosse eu a náufraga ali aportada. O interior está cansado de décadas de abandono e esquecimento por parte do poder político. Está cansado da desertificação que ano após ano lhe levou os seus, primeiro para o litoral, depois cada vez para mais longe. Terras de emigração e de fronteira, sempre foi o longe o seu destino.
Mais de quatro décadas sobre o vinte e cinco de Abril, pouco parece ter mudado. As autoestradas do progresso serviram para acentuar o isolamento e a Guarda, como outras cidades e vilas do interior, ficou a ver, do alto da torre, passar ao largo os carros vindos de ou a caminho de Espanha e da Europa.
De cada vez que vou à Guarda, dou por mim a deitar contas ao dinheiro gasto em portagens e scut’s, sem falar na gasolina, e sinto na pele, com tristeza, como as estradas que julguei aproximar-me da cidade acabaram por agravar a distância. A Guarda fica-me cada vez mais longe. De cada vez que volto à Guarda, sinto que alguma coisa se perdeu. Que o fosso entre o litoral urbano e o interior se tornou mais fundo. Abraça-me o pinheiro da casa familiar e a janela manuelina da rua direita, cada vez mais triste e abandonada, fita-me com os “olhos mortos” com que já olhou Vergílio Ferreira. O vulto nobre da catedral, a garrida, as gárgulas e o “cu” da Sé confidenciam-me na sua voz de pedra a tristeza de décadas de alheamento e de políticas desastrosas. Falam-me de solidão. Falamos a mesma linguagem e não posso evitar que me doa a minha alma granítica.
As famílias envelheceram, os filhos partiram, a população envelheceu e sente-se hoje mais só e abandonada do que nunca, na maior parte dos casos com pensões de reforma miseráveis e sonhos desfeitos. Porque todas as promessas de amanhãs dourados se saldaram em crise, as poucas empresas foram fechando e os bancos que levaram em tempos, um a um, todos os cafés da cidade em nome do futuro encerraram portas deixando atrás de si um indizível vazio identitário, a rasura da memória, quando não uma cratera de dívidas em que todos, e em especial o interior, nos vamos afundando. “Vamos indo”, é a expressão que ouço por lá e traduz uma resignação de séculos. Ou talvez uma resiliência de séculos, porque a Guarda é uma cidade altiva, granítica, resistente aos ventos e às neves da serra.
As autarquias procuram iludir a ausência de tecido empresarial ou de oportunidades de emprego, de políticas económicas e culturais capazes de fixar os jovens e as famílias ao interior com festas que distraem os olhos e sobretudo o pensamento. Cativam turistas, fixam sorrisos em “selfies” de passagem, mas não criam raízes, riqueza, desenvolvimento sustentado, ou promovem projetos de fixação dos jovens e famílias ao interior. O património cultural, edificado ou imaterial, permanece esquecido.
Décadas de promessas, de sonhos e de utopia que acabaram em desespero e desencanto. Os incêndios de 2017 deram a ver esse país envelhecido e abandonado à sua sorte. Agora que os turistas se foram e um vírus lhes roubou a esperança, as populações cansaram-se. Levaram-lhes os centros de saúde, os tribunais, as escolas. Levaram-lhes os sonhos. A esperança. Por isso lançam um grito silencioso. Chega.
Em finais de Outubro, estive no Alentejo, distrito de Beja. E fiquei surpreendida com a mudança ocorrida de há meia dúzia de anos a esta parte. A paisagem está irreconhecível com a produção intensiva de olival: olha-se a perder de vista a planície e não há um “chaparro”, antes um mar de linhas. Um mar verde de oliveiras geneticamente modificadas, de oliveiras que não parecem oliveiras, um mar que tem vindo a crescer, levando atrás de si vestígios arqueológicos, pondo em causa a biodiversidade ambiental, o património cultural material e imaterial, a memória das populações. Durante o jantar que tive com várias pessoas pude aperceber-me dessa profunda inquietação. Da revolta incontida que se estendia igualmente à produção intensiva da uva de mesa em estufas que desenham na paisagem uma seara ondulante de plástico. Para toda esta produção intensiva chegaram gentes vindas de outras geografias. Paquistaneses, nepaleses, africanos, indianos, porventura gente mais habituada a suportar as altas temperaturas que se fazem sentir nas estufas, (lugares de “escalfa-pretos”, diz-se na gíria local) e menos exigente em matéria salarial. Gente estrangeira que as populações olham com distância e desconfiança.
Em alguns casos, com ressentimento, como acontece com a população cigana, contra o “rendimento mínimo” garantido pelo Estado, quando veem passar algumas dessas famílias subsidiadas, dizem, com “altos Mercedes” ou mesmo “Ferraris”. Não sei o que há ou não de verdade em tudo isto ou se é ou não complacente a autoridade fiscal; sei que, em qualquer dos casos, não posso justificar o racismo e a xenofobia. Mas numa população envelhecida, condenada a reformas de miséria pelo mesmo Estado, posso compreender o ressentimento. A revolta perante um sistema económico que ao longo das décadas tem vindo a promover cada vez mais a desigualdade social. Que permite o “rendimento máximo” a alguns enquanto outros estão condenados a pagar impostos e a reformas minimalistas.
Se quisermos combater o avanço da extrema-direita, teremos de falar com verdade e desassombro, sem pudor, sem politicamente correto e sem partidarite, sobre tudo isto.
 

Sobre o autor

Isabel Cristina Mateus

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