É da natureza das revoluções industriais alterar de forma profunda o nosso modo de vida. A revolução industrial em curso não é exceção. Bem pelo contrário. Assente na crescente digitalização de procedimentos e na interligação e autonomização de equipamentos através da inteligência artificial, a quarta revolução industrial está a processar-se a uma velocidade vertiginosa e a atingir quase todas as dimensões da vida humana.
Tal como nas revoluções industriais que a precederam, as novas tecnologias começam por se revelar úteis, para pouco depois se assumirem como imprescindíveis. Pelo caminho, levam à supressão de inúmeros serviços tradicionais e consequente eliminação dos postos de trabalho a eles associados, ao mesmo tempo que abrem as portas ao aparecimento de novas profissões e à criação de novos empregos.
Até aqui, tudo bem. Tudo bem porque estamos a falar de ferramentas digitais que, regra geral, vêm facilitar procedimentos, aumentar a produtividade, libertar-nos de trabalhos pesados e poupar tempo, dinheiro e o ambiente. Veja-se, por exemplo, o caso do voto eletrónico: votar passa a estar à distância de um ou dois “cliques”; não necessitamos de nos deslocar à mesa de voto, poupando tempo e os custos financeiros e ambientais associados à deslocação; e beneficiamos duplamente a preservação do ambiente ao prescindir da impressão e da posterior inutilização de toneladas de papel.
Os problemas começam quando olhamos para o atual mapa geopolítico. Em 2019, 43% da população mundial não vivia num regime que pudesse ser categorizado como democrático. No caso desses 43%, as tecnologias digitais encontram-se, muitas vezes, ao serviço de regimes totalitários que, através delas, conseguem reforçar de forma exponencial os seus meios autoritários e repressivos. A China, o Camboja e Myanmar são apenas três de vários exemplos que aqui poderiam ser enunciados.
Não é novidade que as tecnologias certas podem cair nas mãos erradas e que, de cada vez que isso acontece, o mundo corre sérios riscos. Aliás, não estamos sequer livres de isso acontecer no seio das próprias democracias liberais. Tendo em conta a liberdade de ação concedida à iniciativa privada na área tecnológica em vários países ocidentais e a impotência das entidades governamentais e as instituições internacionais no acompanhamento e regulamentação dos avanços galopantes das tecnologias digitais, quem nos garante que algumas destas ferramentas não podem nascer logo nas mãos erradas? Casos pouco animadores é coisa que não falta por estas bandas, como os dois exemplos que se seguem bem evidenciam.
O Facebook tem quase tantos utilizadores ativos (2,74 biliões) como a população somada dos dois países mais populosos do mundo. Em 2019, ficou provado que o Facebook participou na cedência abusiva de dados pessoais de dezenas de milhões dos seus utilizadores a uma outra empresa privada envolvida nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016.
De rumores de “bolhas especulativas” prestes a implodir, ao caso peculiar da Dogecoin (nascida de uma “brincadeira de amigos” e que hoje vale uma pequena fortuna), passando pelo estranho fenómeno da “mineração” através do qual são criadas, eis alguns elementos do cartão de visita das célebres moedas digitais que hoje se afiguram como um dos maiores desafios ao funcionamento dos bancos centrais e do próprio sistema financeiro mundial.
Ditaduras e oligarquias digitais
«Até aqui, tudo bem. Tudo bem porque estamos a falar de ferramentas digitais que, regra geral, vêm facilitar procedimentos, aumentar a produtividade, libertar-nos de trabalhos pesados e poupar tempo, dinheiro e o ambiente»