De jornalista e de louco, todos temos um pouco

Escrito por Fidélia Pissarra

Numa muito distante noite de quinta-feira, alguém decidiu pregar uma partida radiofónica. Entre o anúncio dos discos que no estúdio de rádio silenciavam a animada conversa de meia dúzia de adolescentes, levanta-se a mão que sentencia na direção de um deles: fala. Ciente de que em rádio os silêncios são interditos, prendeu-se-lhe a voz em não querer acreditar que, segundo a luzinha, os microfones estavam abertos. Depois de uns segundos, do tamanho da eternidade, consegue articular qualquer coisa como: «Acabámos de ouvir os ABBA que, infelizmente para os seus fãs, decidiram separar-se». Quando já pensava que até se safara muito bem, embrulharam-lhe o alívio em gargalhadas. Onde é que raio foste buscar essa ideia? Falam nisso, mas não se separaram. Nesses tempos, em que na rádio as inverdades, por antecipação ou distorção de factos, eram ainda mais interditas do que os silêncios, repôs-se a verdade em menos de um ai. Contudo, aquele ímpeto para dar notícias em primeira mão mataria, logo ali, todas as suas veleidades jornalísticas.
Fosse nos dias de hoje, os bons dos ABBA, não só se tinham separado logo, como ainda haveriam de se ter esfaqueado uns aos outros por via de uns quaisquer polegares hiperativos. Antes que alguém desse por isso, já a gravação do programa se teria eternizado. As palavras ditas haveriam de ser impulsionadas por todos os “jornalistas” com assento nas redes socias até ao funeral dos cantantes e ao luto generalizado nas fotos de perfil. O problema, nem será tanto as notícias terem deixado de interessar como um facto em si para passarem a interessar pelo seu potencial de exploração, mas sim o ninguém se importar com isso. O criminoso deixou de se importar com o ser descoberto, o juiz deixou de se importar com a justiça, o médico com o doente, o professor com o aluno e todos com a verdade. Ninguém se importa com nada, porque neste universo “jornalístico” basta um facto emergir da internet para passar a existir como coisa real. Tão real, que até os próprios jornalistas vão atrás destas verdades instantâneas. A Festa do Avante é manchete num dos jornais internacionais mais credíveis, o comboio foi suprimido, as estradas cortadas, qualquer coisa serve desde que sirva a alguém, prejudicando outrem. Depois, bem pode tudo ser desmentido à exaustão que outra verdade é que não pega. Assim, que ninguém se admire de ver aumentar o número dos que acreditam em qua a Terra é um prato parado a ver passar o Sol, que o holocausto não existiu e que a viagem à Lua foi encenada num estúdio de Hollywood. Neste diz que disse não há mentiras ou sequer inverdades, há citações cibernéticas de famosos digitais. Ou o contrário, se quisermos ser mais precisos. Parece que, porque isto ainda não é a internet para ser verdade irrefutável, o pai da dita terá dito que serviria para a democratização da educação e cultura. Valham-nos, por isso, todos os santinhos da web.20. Porque se alguma coisa a outra internet, sendo a mesma, democratizou foi a disseminação das verdades de cada um. Ou das inverdades, se preferirem.

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Fidélia Pissarra

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