Das memórias da raiz de um Quercus

Escrito por Fidélia Pissarra

De raízes mais fortes que a acidez da terra a que se agarra, a árvore que, em conjunto com mais umas centenas ali existentes, resistiu a décadas de sucessivas machadadas testemunhadas apenas pelos toscos blocos do muro, cuja principal função parece ser a de indicar a quem passa os limites dos caminho que, a partir do portão sul, à esquerda seguem até à Quintazinha do Mouratão e à direita até ao Cerdeiral, gosta de meter conversa com quem se lhe aproxima. A mulher, sentada na rudeza do musgo seco do pedregulho, bem tenta ignorar o palavreado da árvore que não se cala atrás de si. A certa altura, diz qualquer coisa sobre pés descalços de crianças a ir para a escola e repara que não é propriamente a árvore a querer conversar com ela, mas antes as memórias das suas raízes a querer interagir com as suas. Não com as suas vividas que essas, para o caso, não interessavam nada. O que as memórias das raízes do jovem carvalho queriam era conversar com as memórias em segunda mão que, justamente, acreditava terem-lhe sido passadas pelas raízes que também haveria de ter. Parece que isto, de existir, mesmo sendo-se nómada ou, não o querendo aceitar, não é possível sem raízes. Neste particular, o Quercusito não deixava de ter razão, porém não era conversa que lhe estivesse a apetecer e preferiu desconversar. Começou por lhe perguntar se não desconfiava das memórias de uma velha como a raiz que o prendia à terra. As velhas tiveram sempre a mania de inventar histórias só para terem tema de conversa. A seguir, confessou que não se fiava lá muito nessas histórias, a que o tempo ameniza a dor e as teias de aranha a fealdade. Deu-lhe até vários exemplos de factos impossíveis de terem acontecido num tempo que não condizia, falou-lhe da gente que assistia a programas de televisão quando ainda não existia televisão nenhuma, de quem lia sem sequer ter aprendido a ler e de outros que, de tanto viajar, até fotos tiradas em Marte diziam ter. Não que o fizessem de propósito, ou por mal. Provavelmente, era só para compensar a acidez das terras de origem. Distraído com a quantidade de insetos acabados de chegar, o Quercus pareceu não ter ouvido nada do que a mulher lhe acabara de dizer e retorna ao assunto das memórias que, mesmo não tendo vivido, parece não querer deixar morrer. Mais para não deixar passar a oportunidade de continuar a conversa, do que por ser avesso a altercações, evidencie-se, o carvalho acaba a concordar com tudo o que não ouvira. Tinha razão.
O expediente exaspera-a mais do que o burlesco da situação, desata dali para fora e só a lembrança das rãzitas das águas da charca grande que a árvore ajudava a manter, a impediu de ir buscar logo a moto serra. Pensando melhor, aproveitava e cortava já a lenha para o próximo inverno. Contudo, depois de umas quantas giestas gigantes e umas silvas em flor, deu de caras com aquela urze branca como que a pedir-lhe para se sentar ali um bocadinho e foi o que fez. Aproveitou e, para não se esquecer da desconversa tida com as memórias enviesadas de um carvalho, algures entre as freguesias das Panóias e a da Guarda, pôs-se a escrever.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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