O comportamento de Joacine Katar Moreira afigura-se tão surreal quanto o livro de Gabriel García Márquez. A deputada tornou-se uma adaptação parlamentar da jovem personagem Angela Vicario. Ambas desenvolveram uma obsessão que as torna incapazes de alcançar o fim que as move, mas se Angela se apaixonou por outrem, a paixão de Joacine não é por ninguém que não por si mesma.
E é aí que reside o problema central do diferendo entre a primeira deputada eleita pelo Livre e o partido fundado por Rui Tavares: Joacine perdeu-se de amores por si própria e não parece ter condições para se reencontrar. Isso torna inverosímil o reencontro entre Joacine e o Livre.
Em contracorrente com a convicção dominante, sempre considerei haver espaço no quadro político nacional para um partido como o Livre. Apesar de ser estreita a margem de afirmação entre o PS e o Bloco de Esquerda, o Livre surgiu como a primeira força política capaz de se afirmar desassombradamente de esquerda e europeísta, deixando o antieuropeísmo crítico para a sua esquerda (Bloco e PCP) e o europeísmo acrítico para a sua direita (PS). Foi também o primeiro partido a defender o diálogo à esquerda que esteve na base da geringonça.
O sucesso eleitoral não foi imediato, mas houve bons resultados e Rui Tavares esteve perto de ser eleito para o Parlamento Europeu. Havia, portanto, caminho para andar. Esse caminho foi encurtado pelo atalho que resultou do imperfeito sistema de primárias abertas, do qual saiu Joacine como cabeça de lista do Livre por Lisboa.
Depois o Livre entrou no Parlamento pela mão de Joacine, mas a deputada logo fechou a porta à entrada do partido na Assembleia da República. Ao invés de afirmar o europeísmo e ambientalismo do Livre, Joacine quis ser a deputada “anti” (antirracismo, anti-extrema-direita, etc), sempre baseada num discurso identitário e sem nada propor. Pelo caminho, esqueceu-se da sua grande bandeira, a lei da nacionalidade, que não entregou a tempo de ser discutida em plenário, e insistiu em narrativas de discutível eficácia e nenhuma compreensão: do “desamor” pelo Orçamento do Estado à “indiferença” face ao excedente orçamental. A moderação deu assim lugar ao radicalismo.
Os “fait divers” em que Joacine se enredou não são culpa do Livre nem da comunicação social, antes e somente reflexo de uma personalidade deslumbrada, egocêntrica, irascível e imatura. Além de que argumentar que a sua gaguez em nada limitaria a compreensão da sua mensagem revela total inconsciência, já que até hoje não houve nenhum discurso em plenário em que os jornalistas não tenham sentido dificuldades para a compreender – e os jornalistas farão seguramente maior esforço do que o comum e desinteressado dos eleitores.
O Livre ficou num beco sem saída. Se retira a confiança política a Joacine e esta fica como deputada não inscrita, o Livre perde capacidade de afirmação parlamentar, logo eleitoral, e arrisca ter perdido a grande oportunidade para se enraizar no sistema político nacional. Se mantiver confiança na deputada, fica amarrado à entropia dos desmandos de Joacine e a um futuro de paulatina descredibilização. Já Joacine tornou-se uma caricatura de si mesma e do que quis defender e o seu futuro político não irá além da legislatura. Tudo aponta para que estejamos confrontados com duas mortes anunciadas.
PS: Este texto foi escrito já depois do congresso do Livre realizado no fim de semana e que terminou com sinais tão ténues quanto improváveis de aproximação entre as partes. Mas também sem ser conhecida a decisão da nova assembleia eleita sobre a retirada de confiança política a Joacine.