Conversa de café

“Dar um pouco aos sectores mais sacrificados pela pandemia é um tributo à vida.”

Nos séculos XIX e XX a vida social fazia-se eminentemente nos cafés. Eram o centro do mundo nas vilas e pequenas cidades. E eram os pontos de encontro e centro de vida social e cultural das grandes cidades. Era ali que as elites se encontravam, que organizavam as suas tertúlias, os saraus ou promoviam contatos sociais e económicos. Hoje já não é assim. Os nostálgicos dos grandes cafés assistem, tristemente, ao fim dessa era – hoje as redes sociais são o ponto de encontro das pessoas e as conversas podem ser muitas, mas não têm vida, nem rostos, nem emoções, são à velocidade da Internet ou à distância de um clique…

Há cidades onde os “bons” cafés sobreviveram e ainda é possível encontrar locais cheios de glamour e vida onde se bebe um café enquanto se lê um jornal ou se conversa. São cidades que mantém o encanto da vida social suave sem darem por isso. É assim em todas as cidades espanholas ou francesas, nas italianas ou nas gregas, até nas alemãs ou nas nórdicas. Os ingleses vivem mais intensamente o “pub”, onde bebem cerveja e jogam. Entre nós há também algumas cidades com essa sorte, mas os seus habitantes nem o sabem – como os têm, não lhes sentem a falta. Coimbra tem o icónico “Café Santa Cruz”; Évora tem o Arcada; Lisboa tem muitos e bons cafés mas é n’A Brasileira onde ainda se pode viver o requinte da hora da “bica” enquanto se lê o jornal – para os que gostam de continuar a ler jornais em papel é na “A Brasileira do Chiado” que os beirões que vivem em Lisboa podem comprar e ler o Jornal O INTERIOR e outros periódicos de todo o país.

Nesse país que parece já não existir, mas teima em seguir vivo e ser palco da vida social e cultural das cidades, há cafés que fazem a diferença: O “Café Vianna” no centro de Braga, ícone, de visita obrigatória, num quarteirão onde o lazer domina uma cidade que fervilha, o mais “antigo” café de Portugal tem agora um novo elemento de referência: a “Calíope” de Pedro Figueiredo. O escultor guardense instalou nos tetos do “Café Vianna” uma obra notável, inspirada na musa da poesia épica da mitologia grega. No café que está aberto na Arcada de Braga desde 1871 vê-se agora uma figura feminina de livro na mão e que foi inaugurada na semana passada como a 25ª obra do “roteiro de arte, literatura e comércio local”, para celebrar o Grande Prémio de Literatura da cidade bracarense (as anteriores 24 obras são livros, o que eleva ainda mais a obra de Pedro Figueiredo, a única tridimensional do roteiro).

Na Guarda, infelizmente, os cafés de referência desapareceram. Da “Leitaria Cristal” não me recordo, mas o meu pai sempre me disse que me lá levava pela mão quando era criança e que “aquilo” era um «mundo à parte» na velha cidade clerical e austera – apaixonei-me depois pelos muitos relatos sobre a vida da “Cristal”, pelas fotografias e postais que representavam um tempo e uma vida intensa na Rua do Comércio da “mais alta”. Mas recordo bem o “Café Mondego”, onde bebia uma cevada com o Américo Rodrigues antes de irmos para o teatro, ou do “Café Monteneve”, onde os mais jovens não podíamos entrar porque as mesas estavam ocupadas pelos professores do liceu… e depois passaria a ser o café dos jovens – em nome do “progresso” deram lugar a um banco e a uma loja de moda. Ainda houve o “Café Central”, último reduto da vida de café na Guarda, a que a Caixa Agrícola sucedeu já no séc. XXI. Fazem muita falta. Se ainda houvesse cafés na cidade, haveria uma outra vida, uma outra elite, outras conversas e debates. Estaríamos a falar do que está certo e está errado, por exemplo, das desigualdades entre quem trabalha no público, e mesmo que fique em casa sem trabalhar recebe o salário integralmente, e no privado, que na mesma situação só recebe uma parte do vencimento. Conversas de café…

Nesta época de crise, os restaurantes sobrevivem heroicamente e os poucos cafés que não deram lugar às pastelarias, dificilmente vão manter a porta aberta. Em nome da cultura e da vida social das cidades, devíamos procurar apoiar a sua sobrevivência. Num momento em que os apoios prometidos não chegam à restauração ou aos jornais, em que a sociedade não pode ser egoísta, dar um pouco aos sectores mais sacrificados pela pandemia é um tributo à vida.

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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