No átrio de “O homem universal” Teixeira de Pascoaes confessava que escrevia «como quem conversa, em voz alta, consigo mesmo». Bernanos – perdoe o leitor o recurso excessivo ao autor de “Les enfants humiliés”’, mas faço-o para me certificar de que continuo fiel à criança que fui – alargava o espectro recetor, mas ainda assim declarava que escrevia pensando no seu horizonte de amizades, naqueles que o conheciam «muito antes de o terem lido». Todavia não desconsiderava o leitor impessoal, ignoto, que ele consubstancia nessa entidade vocabular carregada de dúplice significação antropológica que é “os outros”: «Ao invés de os desdenhar, desejava compreendê-los melhor, porque compreender já é amar». E acrescentava: «… e que me lerão depois de eu desaparecer». Obviamente que estamos perante o mesmo egoísmo criativo: Bernanos concede uma extensão de si mesmo às amizades mas é inegável que a sua liberdade enquanto escritor se confina a si mesmo, aos seu mundo interior, sem condescendência para quem poderia dele depender ou divergir, ou até quem lhe satisfazia a míngua de pão.
Mesmo quando a filha mais nova do enérgico oposicionista ao regime de Vichy – no seu exílio no Brasil, consequente à tibieza do governo francês face às imposições asfixiadoras da Alemanha nazi – lhe exibia uma folha em branco, dizendo: «Papá – escreve, porque temos fome!», jamais condescendia perante a sua convicção de ser o leitor de si mesmo antes de tudo, o espírito austero e implacável revelado na atitude de recusar a condecoração com a Ordre National de la Légion d’Honneur com que De Gaulle o queria distinguir, apesar da admiração que nutria pelo estratega da Resistência Francesa. Na verdade, é preciso apagar muitas velas para que o escritor produza livremente, imune aos juízos daqueles a quem a palavra jamais foi dirigida e estarão, por conseguinte, fora de qualquer vislumbre de sentido confessional ou literário.
Todavia, escrever sem a mira da empatia ou do compromisso o que decorrente da nossa própria convicção é a mais ingrata das disposições, dada a improvável consensualidade dos leitores ante a proposta de um universo amplamente pessoal, em que o real e o fantástico se confundem; em que a biografia e o curriculum se desencontram; em que o imaginário subalterniza a lógica aritmética do quotidiano.
O fracasso editorial de um génio como León Bloy – que quase ninguém lê – decorre precisamente desse ímpeto criador que se desapieda do resultado extrínseco à obra. Olho o panorama literário nacional e vejo um punhado de autores absolutamente consagrados. A maioria jovens. Leio e logo nas primeiras páginas questiono-me sobre as razões da consagração. Parece-me que talvez estejamos perante literatos aparentemente desafetos ao escrúpulo da personalização, que vão ao encontro do público e da crítica com uma ligeireza confrangedora, procurando projetarem-se nos “outros”, fazer dos “outros” coautores da sua produção. Afora os apresentadores de telejornais – que nem seque me merecem a mais ténue referência – contemplo acriticamente uma vaga de publicistas que escrevem livros sob o desiderato do “politicamente correto”, em que os protagonistas são criaturas reais, decalcadas de uma sociedade violentamente atual, numa contemplação ultrarrealista do mundo hodierno: são vegetarianos, gays, não-fumadores e abstémios.
Quem me conhece sabe que sou absolutamente complacente e benévolo perante as opções de vida ou a natureza de cada um. Seja ela qual for. Mas falamos de literatura. E transformar a criação literária num repositório de conveniências existenciais é a mais abjeta das condições do criador. É confinar a natureza poética da existência a um conceito “puramente científico” ou “aritmético-geométrico” ou “quantitativo-extensivo” (Pascoais dixit). Escrevo isto sem qualquer intenção crítica. Entretanto recoloco o livro na estante da livraria e abandono o espaço ligeiramente persuadido, desta vez, de que saio dela mais pobre. E penso na inversão de valores. Talvez Bernanos, Pascoaes ou Bloy – com uma acrescida dose de talento – pudessem subscrever estas linhas. Tal como eles, escrevi-as como quem fala «consigo mesmo». «Não desdenho os outros; ao invés de os desdenhar desejava compreendê-los melhor. Porque compreender já é amar».
* Escritor