Colisão de Direitos

Escrito por António Ferreira

«O ideal era mesmo termos um nível de adesão a princípios básicos de cidadania que dispensasse a imposição da medida»

Num dos dias a seguir ao anúncio pelo primeiro-ministro da possível obrigatoriedade da instalação e uso da aplicação StayAway Covid, a TSF dedicou um dos seus fóruns ao assunto. Recordemos os dados: a Google e a Apple acordaram na criação de uma plataforma comum para instalação em smartphones que permitisse depois aos governos nacionais a criação de uma aplicação de rastreio de possíveis contaminações com Covid-19. Essa aplicação tinha de obedecer a vários requisitos: o anonimato de quem pudesse ter contaminado o utilizador; a consideração como risco de contaminação o contacto, durante algum dos últimos 15 dias, por mais de 15 minutos e a menos de dois metros do utilizador da aplicação com o possível agente de contágio; o registo pelos infetados na aplicação do seu próprio smartphone através de um código fornecido pelo médico.
O objetivo era permitir a quem tivesse estado em contacto com um infetado fazer ele próprio o teste de modo a evitar ser ele próprio uma fonte de contágio. Isto seria possível graças à utilização de duas tecnologias hoje generalizadas: o “Bluetooth” e o GPS. Recordemos o essencial: dois metros, 15 minutos, 15 dias, anonimato.
A generalização do uso da aplicação permitiria a identificação de novos surtos e a identificação e isolamento mais rápidos dos novos contagiados, de modo a evitar posteriores contaminações. A ser bem sucedida, a aplicação permitiria salvar vidas e diminuir a rapidez com que a doença se tem vindo a espalhar. Os utilizadores passariam eles próprios a fazer o papel de rastreadores da doença, libertando recursos ao Sistema Nacional de Saúde.
Não ouvi ninguém, nesse debate, defender a obrigatoriedade do uso da aplicação. Uns julgavam que era uma gravíssima violação da sua sacrossanta privacidade (mas há garantia de anonimato), outros que se estivessem parados no trânsito ao lado de outro carro, com um contaminado, ambos com os vidros fechados, isso poderia levar a falsos positivos (dois metros, quinze minutos), outros que haveria também falsos positivos quando duas pessoas, uma delas contaminadas, estivessem separadas por uma parede (dois metros, quinze minutos).
Vieram depois os heróis: “Recuso-me terminantemente!”; “Prendam-me!”, “Façam o que quiserem, mas eu não instalo a aplicação!”, “Não ligo o “Bluetooth” ou o GPS!”. Fantástico. É mais importante o seu direito a uma privacidade que nem sequer é beliscada à possibilidade de ajudarem a travar a pandemia.
Há um ponto em que podem ter razão, que é a da possibilidade de uma imposição por lei da instalação e uso da aplicação implicar a fiscalização do cumprimento dessa lei, por exemplo através da verificação dos nossos telemóveis por agentes da autoridade (“Nenhum GNR mexe no meu telemóvel!”).
O ideal era mesmo termos um nível de adesão a princípios básicos de cidadania que dispensasse a imposição da medida. Enquanto isso não acontecer e os novos casos continuarem a aumentar teremos de utilizar todas as armas possíveis, mesmo que perante o direito à vida e à saúde dos outros tenhamos de ceder um pouco da nossa privacidade.

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António Ferreira

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