“Coisas Mínimas & Outras Coisas”

Escrito por Maria Afonso

“Tudo é apelo, mistério, busca. Um percurso através da sombra e da agonia. Há cinzas pelo caminho e uma fragilidade que nos seduz. Quase uma asfixia, esse desejo de prosseguir viagem. Não há hesitação possível. Imagem e palavra seguem-nos. Ou somos nós sem outra opção que não seja a de nos colarmos à gradação dos versos. “

“Coisas Mínimas & Outras Coisas” é o novo livro de poesia e fotografia de Jorge Velhote, apresentado dia 29 de maio, no iNstantes, Festival Internacional de Fotografia de Avintes.
A capa é desde logo um indício de mistério. Uma portada rasgada de luz. Ou a luz fechada numa portada. Não sabemos se estamos a entrar no outro lado do mundo ou se acabamos de sair – a quase escuridão; o rumor de uma sombra; é a luz, dizias, essa fístula; e no limite os vestígios da penumbra ou da tristeza; entras então na sombra como mensagem ou oração…
É um guia. Dia, mês, ano e hora anotados. Não nos podemos perder. Ainda que a nossa vontade seja a de mergulhar na imprevisibilidade. Deixarmo-nos levar e não mais ligar ao tempo. Tudo é apelo, mistério, busca. Um percurso através da sombra e da agonia. Há cinzas pelo caminho e uma fragilidade que nos seduz. Quase uma asfixia, esse desejo de prosseguir viagem. Não há hesitação possível. Imagem e palavra seguem-nos. Ou somos nós sem outra opção que não seja a de nos colarmos à gradação dos versos. À nudez das imagens.
Somos invadidos pela acção dos verbos – tocar, segurar, esquecer, gotejar, afogar, despedir, respirar, consentir, acolher. Não se esgota a necessidade de seguir caminho – e convocamos, afrontamos, depositamos, surpreendemo-nos.
O tempo deixa de existir nas coisas mínimas. Oculta-se nas cicatrizes e nas convulsões. Na imobilidade e no esquecimento. Enfrentamos o caos. Resistimos a tempestades. Vamos com a sombra. Pela sombra. Somos parte da secura e da incerteza. Deixamos de ser guiados, e somos já nós, leitores, que procuramos a efemeridade da morte. No percurso do negrume detemo-nos junto ao transcendente – era um homem antigo como um clarão. E arriscamos perder-nos aqui. Sem data nem hora. Mas o que buscamos, afinal, é a fertilidade da morte. Atingir a redenção pelo rasto da luz que vamos ordenando pelo caminho. Ainda que possamos chegar a um cais incerto.
Esse lugar só pode ser a Beleza. A depuração dos poemas e das formas são a demanda da beleza – através da luz, da sombra, da escuridão, do contraste e do silêncio – a beleza não é um lugar maldito.
É a palavra quase sempre do mundo da representação e muitas vezes encontra-se o mais longe possível da realidade, no mundo do desacerto. A linguagem poética, neste livro, está intimamente relacionada com a visão. A forma como o autor vê tem ligação directa com a escrita. Não se limita a ver. Acima de tudo repara. As coisas mínimas são, aqui, determinadas pela minúcia da observação. A linguagem é o mais precisa possível, eliminando o que está a mais, o que perturba, daí a força e a densidade de cada palavra. Não há lugares comuns neste livro porque não existem expressões banalizadas.
Jorge Velhote, diz-nos Teresa Sá-Couto, é um observador, um intérprete, um lapidário, um filigranista da voz que se oculta e que procura uma linguagem que a possa nomear. Se o texto se oferece ao leitor como espaço indefinidamente aberto à interpretação, o mesmo acontece com as fotografias do autor. Entre o sujeito e o objecto há uma fractura onde se sobrepõem o imaginário e o real e é no intervalo que a criação acontece.
Linhas, arabescos, texturas, volumes são o olhar gráfico de Jorge Velhote ao transformar a sua visão fotográfica do mundo num registo onde as formas se apresentam desenhadas – é um desenho nos seus vestígios o que se afasta em presença luminosa.
Algumas fotografias assemelham-se a desenhos em grafite e numa ou noutra consegue perceber-se a técnica de frottage assim como a técnica do escorço (revelando uma certa referência clássica como a que se adivinha na obra lamentações sobre o cristo morto de Andrea Mantegna).
Neste livro tudo é limpo de excessos para nos conduzir ao estado em que não necessitamos de procurar mais. Quer seja esse estado a luz ou a sombra. A vida ou a morte. Temos, então, que reparar (parar muito tempo diante dos poemas e das fotografias). E de cada vez haveremos de descobrir sempre coisas diferentes, mais e mais pormenores de que nos tornaremos, sigilosamente, íntimos. Se não repararmos, e apenas olharmos, rapidamente esqueceremos. E este livro não pode correr o risco de ser esquecido.

Sobre o autor

Maria Afonso

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